Estudo mostra que o ILSI, um instituto criado por corporações, projetou-se no debate sobre integridade científica para tomar o papel de referência na área
Acredita-se que, em uma corrida, quem sai primeiro provavelmente será o vencedor. Este é o mote que o International Life Sciences Institute (ILSI) adotou nos últimos anos, de acordo com uma pesquisa recentemente publicada no periódico Globalization and Health. Criado pela Coca-Cola em 1978, o ILSI, na versão oficial, serve para fomentar mundialmente um fórum de discussões científicas. Mas, maculado desde o berço, funciona na prática como um braço de corporações privadas para distorcer evidências e enviesar debates.
Tal origem controversa, no entanto, não o impede de largar à frente para se sustentar como uma referência naquilo em que deveria ser o seu calcanhar de aquiles: a integridade científica.
Pelo menos, é isso o que diz o artigo “Beyond nutrition and physical activity: food industry shaping of the very principles of scientific integrity” (“Além da nutrição e da atividade física: a indústria de alimentos moldando os princípios da integridade científica”, em tradução livre). O estudo, conduzido por Mélissa Mialon, Matthew Ho, Angela Carriedo, Gary Huskin e Eric Crosbie, mostra que, a despeito do vínculo com empresas que negam a ciência para maximizar lucros, o ILSI trabalha há quase uma década e meia para se firmar como uma referência na área.
Desde algum tempo, sabe-se que as corporações de alimentos ultraprocessados se ancoram em dois pilares para afastar as relações cada vez mais fortes entre os seus produtos e o desenvolvimento de males de saúde.
De um lado, está a ênfase na falta de prática de atividade física pela população como a grande responsável pela pandemia mundial de doenças crônicas não transmissíveis, tais quais diabetes, câncer, hipertensão, entre outras. De outro, a cooptação de pesquisadores da área da nutrição que desviam o foco sobre a raiz dos problemas relacionados à alimentação, cuja estratégia-vitrine pode ser creditada ao nutricionismo — uma prática que tenta reduzir alimentos à imagem de um único nutriente.
O que os pesquisadores demonstraram na Globalization and Health, por sua vez, é que o instituto patrocinado por corporações encontrou algo que políticos brasileiros procuram nos últimos tempos: uma terceira via. “Descobrimos que o ILSI é um protagonista, não apenas na indústria de alimentos, mas amplamente na comunidade científica, no desenvolvimento de padrões e princípios de integridade científica”, escrevem os autores do estudo.
Em suma, a indústria de alimentos usou o ILSI, financiando atividades, para enviesar as discussões sobre conflito de interesses e outros assuntos. Tal apoio chegou ao ponto de as corporações serem autoras diretas de ao menos 38% dos documentos do instituto a respeito desses temas, segundo os pesquisadores.
O grupo de cientistas chegou a tais conclusões após vasculhar revistas acadêmicas, documentos e mídias sociais da indústria, artigos sobre integridade científica, além de uma série de papéis tratando de saúde pública nos Estados Unidos. Ao todo, encontrou 54 artigos de interesse para a pesquisa. E, depois de analisá-los, constatou que 14 deles foram financiados ou elaborados com o envolvimento de corporações alimentícias.
Esse laço tão próximo com empresas privadas, de acordo com os cientistas, mancha a possibilidade de os documentos expressarem, de fato, integridade. “O trabalho do ILSI sobre integridade científica, conflito de interesses e parcerias público-privadas debilita os trabalhos independentes nessa área, coloca o lucro antes da ciência e prejudica os esforços para abordar a influência indevida de atores da indústria em políticas públicas, pesquisas e práticas”, eles afirmam.
Os pesquisadores também dizem que regras de conduta no meio científico patrocinadas por corporações têm um vício de origem: “Os princípios estabelecidos pela indústria já moldaram as evidências sobre a integridade científica”. Eles advogam que essas empresas não participem desse tipo de discussão, o que já acontece em outras áreas.
Um exemplo que, inclusive, serve como referência aos autores do estudo é o da indústria de tabaco. Depois que ficou mais do que provado que as empresas do setor atuavam para distorcer evidências sobre males causados pelo fumo, elas foram proibidas de participar de quaisquer debates envolvendo políticas públicas. Essa é uma das prerrogativas da Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Controle do Tabaco, adotada em 2003.
“Para a indústria de alimentos, há várias coisas que podem ser feitas para chegar a esse patamar [de restrições]”, afirmou Mialon, uma das autoras do estudo, em entrevista por e-mail para O Joio e O Trigo.
Ela enumerou algumas medidas que poderiam ser adotadas para evitar que a indústria interfira em pesquisas científicas. Exemplos são oferecer mais informações sobre os riscos de trabalhar em estudos para corporações; pressionar por mais transparência das empresas; e idealmente, quando possível, não se envolver em pesquisas com a indústria. “Isso significa”, segundo ela, “que precisamos de financiamento sustentável do setor público e de organizações independentes”.
Estratégias
Para alçar-se ao posto de referência sobre ética na ciência, o ILSI tentou se antecipar à onda crescente de discussões sobre o assunto. Os primeiros planos foram traçados em 2007 e evoluíram com uma estratégia pensada para aumentar seu alcance na área. Os documentos analisados pelo estudo publicado no Globalization and Health deixa claro que o instituto vinculado às corporações mirava doutrinar, quando não cooptar, pesquisadores de alimentação, nutrição e saúde.
Os primeiros passos começam com a criação de um programa interno do ILSI para desenvolver princípios que reconhecem as relações da indústria com a ciência e, como afirmam, “uma série de benefícios que (…) proporcionam”. Eles, então, partem dessa premissa para realizar encontros entre acadêmicos e representantes de empresas objetivando elaborar postulados sobre integridade. Entre 2007 e 2012, uma leva inicial de princípios sobre ciência dos alimentos e de nutrição já está formulada, e o instituto se dedica a divulgá-las.
Esse grupo de referências elaboradas em conjunto com a indústria entrou no radar do estudo, que os relacionou na tabela abaixo. Além disso, os cientistas do grupo de Mialon encontraram quais os principais nomes de colaboradores com a indústria para as discussões sobre integridade científica — está disponível aqui.
Pois bem, no período seguinte, delimitado até 2015, o ILSI amplia o escopo e passa a integrar, além dos princípios, as discussões sobre conflito de interesses. Durante as idas e vindas para a elaboração de documentos acerca do tema, a então presidente do instituto e uma das vice-presidentes de The Coca-Cola Company, Rhona Applebaum, envia uma carta aos integrantes do instituto requisitando a formulação de critérios e protocolos “para parcerias de sucesso entre o setor público e privado para promover a saúde pública”.
O recado da executiva da companhia de refrigerantes consta entre uma diversidade de mensagens obtidas pelos pesquisadores. Na mesma carta, Applebaum também diz que empresas foram convidadas a participar dos debates sobre saúde pública, colaborando com a quantia de US$ 10 mil dólares cada uma.
Dito e feito, os cientistas mostram que o ILSI começa a ganhar mais espaço. Em 2014, o instituto propôs-se a compartilhar com uma das principais agências de saúde pública dos EUA, o FDA (Food and Drug Administration, equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, no Brasil), um documento sobre boas práticas em comitês consultivos para pesquisas. No mesmo ano, ele consegue a participação em um grupo de trabalho do Departamento de Agricultura norte-americano sobre conflito de interesses e integridade científica.
No ciclo posterior, de 2015 até atualmente, os braços do ILSI procuram alcançar mais áreas, inclusive fora do meio científico. Postulam como meta chegar a agências governamentais e organizações da sociedade civil. O estudo de Mialón e parceiros cita um artigo publicado pelo instituto no qual ele mira parcerias com “uma ampla gama de instituições, como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças [o CDC, dos EUA], o Comitê de Ética em Publicações (Cope), a Academia Nacional de Medicina [dos Estados Unidos] e a Fundação Laura e John Arnold”.
No Brasil, uma das instituições envolvidas com o ILSI é a Anvisa. Aqui, ela reserva para a entidade os espaços que deveriam pertencer às universidades. A manobra é relativamente simples. Pesquisadores de instituições públicas que ocupam assentos em órgãos colegiados também prestam serviços para empresas de setores que deveriam ser regulados pela agência.
Enquanto isso, o ILSI procura, de 2015 em diante, organizar e ganhar espaço em eventos científicos —cuja lista de participações e alvos de interesse está nas tabelas abaixo. É nesse período, aliás, o ILSI-Brasil realizou a 10ª edição do seu congresso nacional, voltado, justamente, para discutir integridade científica.
Na ocasião, a unidade brasileira do instituto convidou o escritor Frei Betto, uma referência em livros sobre ética, para a palestra inaugural. O autor, questionado pelo Joio na época, afirmou desconhecer os laços do ILSI com corporações.
Procurado por meio de sua assessoria de imprensa, o ILSI-Brasil criticou o estudo em nota enviada para esta reportagem. “A declaração que faz referência ao trabalho do ILSI sobre integridade científica, (sic) reflete uma total falta de compreensão sobre o instituto e o que fez para salvaguardar a veracidade de sua pesquisa científica e as aplicações diretas de seu trabalho. O ILSI não faz lobby, nem busca influenciar indivíduos, posições e ou políticas específicas.”
“Além disso, o ILSI proíbe explicitamente suas entidades membro de defender os interesses comerciais de suas empresas associadas ou outras partes. O propósito do ILSI é promover pesquisas científicas baseadas em evidências que podem ser acessadas e utilizadas por uma variedade de atores – da indústria ao governo, academia e/ou outros pesquisadores. A comunidade global ILSI de especialistas fornece ciência para o bem público, e todas as suas atividades têm um propósito de benefício para a sociedade”, acrescentou a nota.
Mialon e os outros autores do estudo sobre a atuação do instituto são enfáticos no alerta sobre as consequências da mistura entre interesses públicos e privados. “É crucial que a comunidade de saúde pública monitore esse trabalho feito pelo ILSI e outros (…) que podem representar os interesses da indústria”, afirmam. “A literatura que descrevemos aqui deve ser entendida não como tendo surgido de profissionais da nutrição ou mesmo da medicina, mas sim da indústria de alimentos.”
Para não deixar dúvidas, os cientistas, ao encerrar o artigo, lembram uma definição sucinta sobre o que deve nortear os princípios científicos: “As chamadas para a integridade da pesquisa refletem os valores centrais da comunidade de pesquisa. Elas não devem ser usadas como instrumentos para minar a ciência ou para ajudar indústrias que a prejudicam.”