Valor economizado em 2020 seria suficiente para dobrar programa de combate à fome ou reformar duas vezes hospital de referência em doenças respiratórias
Quanto custaria aumentar em dez vezes o valor destinado ao combate à fome no estado da Bahia? Qual o montante necessário para dobrar o investimento federal em atenção básica pelo SUS em todos os municípios baianos ao longo de 2020? Quanto custa aos cofres públicos o investimento na primeira grande reforma e modernização em um hospital de referência em doenças respiratórias em Salvador?
Você deve estar se questionando o que essas perguntas têm em comum. A resposta é simples. Todas elas dizem respeito ao valor de impostos que a Coca-Cola deixou de pagar ao estado da Bahia em 2020, ano em que o Brasil mergulhou em uma crise sanitária e econômica sem precedentes.
Dados exclusivos obtidos pelo Joio mostram que a Coca-Cola se beneficiou de isenções fiscais que, apenas no ano de 2020, totalizaram R$ 60 milhões em ICMS que deixaram de entrar para os cofres públicos baianos. Isso considerando apenas um dos tributos envolvidos na operação. Há outros.
Com esse valor, seria possível atender a qualquer uma dessas demandas de investimento em saúde e segurança alimentar. No caso do Hospital Octávio Mangabeira, daria para multiplicar por dois o investimento do governo estadual na primeira grande obra em quase 80 anos de existência da unidade hospitalar.
Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Ao longo de dez anos, a Coca-Cola deixou de pagar R$ 541 milhões em ICMS no estado da Bahia, onde mantém duas fábricas – nas cidades de Simões Filho e Vitória da Conquista – e oito centros de distribuição e venda. A empresa é beneficiária do Programa de Desenvolvimento Industrial e de Integração Econômica, o que lhe confere, desde agosto de 2010, uma isenção de 81% do tributo.
O caso da Bahia permite colocar na ponta do lápis a conta paga pelo poder público sobre um modus operandi comum a todas as empresas do grupo Solar, o segundo maior fabricante do Sistema Coca-Cola no Brasil e um dos 20 maiores do mundo. A Solar está presente em todos os estados do Nordeste, no Mato Grosso e em parte de Goiás e Tocantins.
Em oito anos, a Solar se beneficiou de descontos que somam R$ 1,6 bilhão apenas em ICMS, graças a incentivos fiscais concedidos pelos estados onde mantém fábricas e mediante intensa pressão sobre gestores públicos, sempre com o argumento de geração de emprego e desenvolvimento regional.
Os números fazem parte de um levantamento exclusivo feito pelo Joio, com base nas informações entregues publicamente a acionistas e investidores pela Renosa, que é uma espécie de empresa “mãe” dona de dois terços das ações do conjunto de companhias que formam o Grupo Solar.
Somando todos os tributos, incluindo impostos federais como Imposto de Renda, IPI e PIS/Cofins, a Solar recuperou um total de R$ 3,1 bilhão, graças a regimes tributários diferenciados e créditos fiscais, diretos e indiretos. O levantamento foi feito com base nos relatórios contábeis disponibilizados
O outro terço da Solar pertence à Recofarma Indústrias da Amazônia, que fabrica a principal matéria-prima dos refrigerantes – os xaropes concentrados – e fornece para os franqueados fazerem a diluição, o envase e a distribuição. Instalada na Zona Franca de Manaus, a Recofarma se beneficia de um distorcido sistema de incentivos fiscais e de créditos sobre impostos que sequer foram pagos na venda dos xaropes e dos direitos de uso da marca para as envasadoras do Sistema Coca-Cola.
Sobre a Solar
O Sistema Coca-Cola Brasil é composto por nove grupos franqueados. A Solar é o segundo maior deles. Olhar para o controle acionário de uma corporação como essa é perder-se em um emaranhado formado a partir de aquisições, fusões, subsidiárias e controles acionários diretos e indiretos. Desenrolar esse emaranhado é importante para entender como se formou um conglomerado com poder suficiente para manter e ampliar regalias fiscais que distorcem o mercado e são capazes de conter medidas como a taxação de bebidas açucaradas, comprovadamente eficaz para reduzir o consumo desses produtos e atenuar a incidência de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, enfermidades cardiovasculares, câncer).
A Solar foi criada a partir da fusão, em 2013, das empresas Norsa, Renosa e Guararapes, ampliando o monopólio do senador tucano Tasso Jereissati, do Ceará, para todos os estados do Nordeste e parte do Mato Grosso, a partir da união com outra família, os Mello. Ambos os grupos se expandiram nos anos 2000, com a compra de fábricas regionais de refrigerantes, ampliando a presença do Sistema Coca-Cola nos estados e sufocando a concorrência.
A Renosa pertencia à família Mello, envasadores da Coca-Cola no Mato Grosso desde o final da década de 1970. Primeiro, em 2006, o grupo comprou a Companhia Maranhense de Refrigerantes, fabricante do Guaraná Jesus. Depois, com a aquisição da Companhia de Alimentos e Bebidas do São Francisco, que já era franqueada da Coca-Cola nos estados de Alagoas, Sergipe e norte da Bahia, e também a Companhia de Águas Funcionais do Nordeste, que produz a Água Mineral Crystal Nordeste.
Enquanto isso, outro grande monopólio se formava com o avanço dos negócios da família Jereissati para além do Ceará. Os donos da Refrescos Cearenses foram comprando fábricas regionais e dando origem à Norsa Refrigerantes, que se tornou franqueada nos estados de Rio Grande do Norte, Bahia e Piauí. A compra de mais uma envasadora do sistema Coca-Cola, a Refresco Guararapes, que pertencia a outro importante político da região, o ex-governador de Sergipe Albano Franco, permitiu aos Jereissati ampliar a atuação para Pernambuco e Paraíba.
As duas famílias fundiram seus negócios, criando a Solar, resultado da união das empresas Renosa, Norsa e Refrescos Guararapes.
Menos fábricas, menos emprego e mais benefícios fiscais
O anúncio da criação da gigante Solar ostenta números, de fato, impressionantes. À época, eram 15 mil funcionários, 13 fábricas, 23 centros de distribuição e capacidade para fabricar 2,3 bilhões de litros ao ano. E a promessa de geração de investimentos, emprego e renda nos estados de atuação.
Um olhar atento para o desempenho do grupo ao longo de oito anos indica, no entanto, uma direção oposta. Enquanto o valor de tributos recuperados, ou seja, impostos que a empresa deixa de pagar, aumenta ao longo dos últimos oito anos, o número de funcionários diminuiu e a quantidade de fábricas, também. A capacidade de produção, por outro lado, aumentou de 2,3 bilhões para 3 bilhões de litros/ano.
De 2013 pra cá, a Solar concentrou a produção em nove unidades, enxugando para 11 mil o quadro de funcionários, agora chamados de “colaboradores”, um eufemismo corporativo conveniente para omitir terceirizações e vínculos precários de trabalho.
Problema generalizado
Atualmente a Solar goza de incentivos no ICMS em sete estados: Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Mato Grosso e Ceará. Nas regiões onde não é possível obter vantagens fiscais a contento, restaram apenas centros de distribuição e escritórios de vendas.
Foi o caso do Piauí, por exemplo, onde a política de incentivos foi encerrada em dezembro de 2020. Dois meses antes, a Coca-Cola fechou a fábrica em Teresina, em funcionamento havia 44 anos, demitindo 100 trabalhadores. “Essa decisão é tomada como parte da constante e necessária busca de eficiência, sinergias e competitividade”, alegou a Solar à época, em nota, confirmando ameaça feita sete anos antes, quando dirigentes da companhia se reuniram com secretários do governo para alertar que encerrariam as atividades da empresa caso o governo não oferecesse uma pauta fiscal menos onerosa.
Assim, enquanto a Solar atua de forma agressiva – e por vezes ameaçadora – junto a estados para manter benefícios tributários, a desativação de fábricas é decidida de forma unilateral.
Em Alagoas, nem mesmo a manutenção de isenções fiscais foi suficiente para evitar o fim da fábrica que funcionava em Arapiraca havia 25 anos. A unidade foi fechada do dia pra noite em fevereiro do ano passado, pegando funcionários e gestores municipais de surpresa. Por lá, as empresas do grupo Solar gozam de 75% de isenção de ICMS até 2025.
A justificativa foi o ganho de produtividade e os investimentos feitos na unidade de Maceió, “uma das mais modernas da companhia”, justificou a Solar. Não é difícil imaginar o impacto sobre Arapiraca, município de 233 mil habitantes, rendimento médio de 1,6 salário mínimo e apenas 18% da população ocupada, segundo o IBGE.
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Faça parteNo caso da unidade da Coca-Cola em João Pessoa, na Paraíba, fechada meses antes, em novembro de 2019, chama a atenção o argumento que a Solar divulgou. Em nota, a empresa afirmou sofrer “pressões tributárias em todo nosso território de atuação, materializadas por aumentos de alíquotas, redução de incentivos fiscais e criação de fundos de contribuição”.
Mas os relatórios contábeis da Renosa, controladora majoritária da Solar, mostram que as empresas que compõem o grupo obtiveram ganhos crescentes em isenções de ICMS e prorrogação dos prazos de validade dessas medidas – em alguns casos, até 2032. No ano de sua criação, a Solar economizou R$ 142,7 milhões em ICMS em isenções. Em 2020, esse valor saltou para R$ 239 milhões.
Em 2019, um movimento feito pelo estado do Rio Grande do Norte levou a empresa a enviar um ofício ao governo expressando preocupação com os riscos de um acordo que previa incentivo de 75% do ICMS até 2032. O governo potiguar fez uma mudança no sistema tributário estadual voltado para a indústria, alterando o modelo de financiamento para isenção direta de ICMS. A alteração desagradou municípios, que perderam arrecadação.
Pela Constituição, todos os municípios – com ou sem indústrias – têm direito a 25% do valor arrecadado de ICMS pelo estado. No modelo anterior, esse percentual incidia sobre o valor total de impostos recolhidos, ou seja, os municípios não eram afetados, independentemente de o Estado devolver parte do dinheiro para a indústria depois. Com a mudança, o estado passa a arrecadar menos e o valor do repasse aos municípios consequentemente diminui. Estimativa feita pela Federação dos Municípios do Rio Grande do Norte à época projetava que as isenções fiscais tenham retirado entre R$ 85 milhões e R$ 150 milhões por ano dos municípios.
O caso foi judicializado e, após acordo, coube ao governo do estado cobrir a perda para o ano de 2020. A partir de 2021, no entanto, os municípios não serão mais recompensados.
Assim, enquanto fabricantes regionais precisam se adaptar à comunidade onde estão inseridos, neste caso são os locais que devem se adequar às necessidades de uma corporação. Qual prefeito ou governador se atreveria a recusar a presença de uma empresa diante da promessa de geração de emprego e renda?
No caso da Coca-Cola, graças a uma enorme influência política e grande poder econômico sobre o estado, estão garantidas as condições ideais para privatizar (e concentrar) lucros e socializar prejuízos, como sintetizou o economista Celso Furtado na frase que se tornou célebre por descrever a lógica capitalista no Brasil.
Eleito três vezes governador do Ceará e em seu segundo mandato como senador, Tasso Jereissati é conhecido por usar a política para obter benefícios em suas atividades empresariais. O Joio tem mostrado a atuação do senador tucano, considerado o mais rico do Brasil, em transações para beneficiar a indústria de refrigerantes e, mais recentemente, em favor do Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado em 2020 e que abriu espaço para a privatização do acesso à água. Presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, esteve à frente das discussões que levaram à aprovação, em 2017, de uma controversa reforma trabalhista, que retirou direitos, precarizou relações e limitou o acesso de trabalhadores à justiça do trabalho.
Nos relatórios contábeis do grupo, chama atenção o valor reservado ao pagamento de ações trabalhistas que a empresa considera provável perder: foram R$ 173 milhões somente em 2020.
Criação de empregos?
A Norsa Refrigerantes, uma das companhias do grupo Solar, aparece ainda entre as 200 empresas com maior número de processos trabalhistas do Brasil, segundo ranking divulgado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Em 2020, foram 140 novos casos, considerando apenas os processos em que a empresa foi acionada e que chegaram à instância máxima da Justiça do Trabalho. Há ainda outros 150 processos trabalhistas de anos anteriores em tramitação no TST.
Entre irregularidades comuns estão a terceirização de atividades-fim, desvio de função, jornadas irregulares, condições inadequadas de segurança e proteção no ambiente de trabalho, transporte irregular de valores por motoristas e assédio moral.
Para uma corporação como a Solar, vale a pena correr certos riscos, contando com processos morosos que levam anos e anos para serem resolvidos e as multas efetivamente pagas. É o caso de uma irregularidade identificada pela Receita Federal na fábrica de Simões Filho, na Bahia, em 2007. Naquele ano, a unidade da Norsa iniciou a operação de uma nova linha de produção, mas só homologou o Sistema Medidor de Vazão (SVM) no final de 2008. Ao identificar a ocorrência, a Receita Federal do Brasil aplicou multa de R$ 35 milhões.
O processo de execução fiscal data de 2015, mas a empresa recorreu da multa. “Os consultores jurídicos classificaram a probabilidade de perda no montante atualizado de R$ 62,764 milhões”, informa o relatório de 2020. Outra empresa do grupo Solar, a Refrescos Guararapes, consta na lista da Dívida Ativa da União como detentora de um passivo de R$ 70 milhões. O grosso do montante é composto por dívidas com a Receita e com a Previdência Social.
Quase o mesmo valor de impostos que a Coca-Cola deixou de arrecadar em todo o Estado da Bahia naquele ano.
A fusão dos grupos Renosa, Guararapes e Norsa para a criação da Solar também entrou na mira da Receita Federal. Em novembro de 2018, a companhia foi intimada pelo não pagamento de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido, sobre ganho de capital na reestruturação que criou a Solar. Segundo prevê a própria Coca-Cola, a estimativa de perda nesse caso é bem maior: R$ 2,5 bilhões. A empresa foi condenada em primeira instância, recorreu da decisão e o processo foi parar no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), onde, desde novembro de 2019, aguarda julgamento.
Nosso levantamento indica que, nos últimos sete anos de operação, o valor estimado pelos auditores em ações tributárias com risco provável ou possível multiplicou por dez, passando de R$ 478 milhões em 2013, para R$ 4,9 bilhões em 2019.
O risco compensa.