Documento mostra que a agenda contra as principais causas de morte no Brasil não deve atingir as metas de redução até 2030
Depois de atrasar e de atender em camarote a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), o Ministério da Saúde publicou, na última quarta-feira (16), o novo plano nacional de combate a doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). O documento, cuja versão anterior expirou no final do ano passado, serve como guia das ações federais para enfrentar uma das principais causas de morte no país e no mundo.
Foram ao menos 730 mil óbitos decorrentes de DCNTs e de agravos registrados no território nacional em 2019, de acordo com o Ministério da Saúde. O número equivale a mais da metade (66,2%) do total de mortes ocorridas no Brasil naquele ano. Além disso, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esses dois males provocaram 55,4 milhões de óbitos em todo o planeta em 2019, respondendo por 7 entre as 10 principais causas de morbidade mundiais, antes do início da pandemia de Covid.
Originalmente batizado de “Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas e agravos não transmissíveis no Brasil, 2021-2030”, o documento fornece diretrizes para prevenir os fatores de risco que dão origem a doenças crônicas como câncer, diabetes e problemas arteriais, bem como a agravos como danos à saúde e óbitos decorrentes de casos de violência e acidentes.
O plano estabelece metas e traça uma estratégia com o objetivo de fortalecer políticas públicas, assim como executar programas de saúde nos diferentes níveis de governo e esferas do Estado. É elaborado tanto pela área técnica do governo federal quanto com a participação da sociedade, com organizações civis, acadêmicas e, também, empresas. Estas últimas colaboram por meio de consulta pública aberta pelo Ministério da Saúde.
A última versão do documento definia ações até o final de 2020. Após a abertura de uma consulta entre 30 de setembro e 30 de novembro daquele ano, havia a expectativa de que o novo plano fosse publicado ainda no primeiro semestre de 2021. Isso, no entanto, não aconteceu.
Enquanto o documento não era divulgado, a Abia — que não participou da consulta pública aberta em 2020, alegando que o prazo de mais de dois meses era curto — fez pressão para que o Ministério da Saúde alterasse metas e estratégias contidas em uma versão preliminar. Para isso, reuniu-se em 4 de março com o secretário de Vigilância em Saúde (SVS), Arnaldo Medeiros, à frente do segundo escalão da pasta.
Naquela época, funcionários do ministério ouvidos por O Joio e O Trigo afirmaram, sob condição de anonimato por medo de represálias, que um dos objetivos da associação era o de retirar do plano a menção ao termo “alimentos ultraprocessados”. Trata-se de um conceito que se tornou uma pedra no sapato da indústria de alimentos por relacionar o consumo da maioria dos produtos do portfólio dessas empresas ao desenvolvimento de DCNTs.
O encontro entre Medeiros e a Abia causou grande preocupação na área técnica da Saúde. Servidores de carreira da pasta temiam que o chefe da SVS cedesse às demandas da associação. Além disso, o ato de o secretário se reunir com a indústria motivou o pedido de demissão de uma das coordenadoras da área, a nutricionista Luciana Monteiro Vasconcelos Sardinha, que soma no currículo mais de 20 anos no planejamento e execução de políticas em saúde pública.
A iniciativa da Abia, entretanto, não vingou. O plano divulgado para 2021-2030 usa o termo alimentos ultraprocessados, associando este tipo de produto com o desenvolvimento de DCNTs — aliás, há cada vez mais evidências científicas sobre essa relação nos últimos anos.
Além disso, o plano considera mais causas externas (agravos) como motivadoras de mortes no país. Alguns exemplos são acidentes de trânsito e domésticos, homicídios e demais episódios de violência.
A nutricionista Patrícia Gentil, consultora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), afirma que, de um lado, o plano também reforça a mensagem do Guia Alimentar para a População Brasileira, citando-o diversas vezes para estabelecer metas e diretrizes. “O reforço do Guia e da nomenclatura reforçam a mensagem de que os alimentos ultraprocessados têm impacto nas doenças crônicas e no sobrepeso e obesidade.”
Por outro lado, Patrícia diz que o documento propõe uma campanha controversa. Enquanto admite que os ultraprocessados, produzidos pela indústria, são reconhecidos como fatores importantes para o desenvolvimento de males à saúde, o Ministério da Saúde propõe uma campanha para reduzir o uso de sal e açúcar adicionados no uso doméstico pelas famílias. “O foco deveria ser na redução de alimentos ultraprocessados, até porque existe uma meta para isso”, critica a nutricionista.
Metas distantes
O novo plano também mostra que vai ser difícil para o país atingir as metas de redução de doenças crônicas e agravos traçadas até 2030. No atual ritmo das políticas de saúde, por exemplo, a taxa de mortes prematuras (entre 30 e 69 anos) por DCNTs por 100 mil habitantes no país chegaria, no mínimo, a 228,3. Originalmente, o plano prevê atingir a marca de pelo menos 192 mortes prematuras a cada 100 mil pessoas até o final da década.
Em entrevista ao O Joio e o Trigo, a professora de epidemiologia do Instituto de Medicina Social da UERJ Gulnar Azevedo avalia que “as metas seriam atingíveis desde que uma grande política intersetorial [envolvendo outros setores de governo e de Estado] de ação contra as doenças crônicas fosse colocada em prática”. Para ela, isso inclui a regulamentação da alimentação e a do tabagismo, “dois dos principais fatores de risco para essas doenças, sem abrir mão do que já conquistamos”.
Segundo Gulnar, os esforços para a implementação de uma agenda regulatória (a criação de leis e outras regras) que incida sobre DCNTs e agravos estão aquém da necessidade do país. Ela menciona a necessidade de reduzir os índices de obesidade e de sobrepeso na população, que estão em crescimento. “O desafio é muito grande”, avalia.
Além disso, a professora da UERJ diz que a pandemia e os cortes de financiamento do SUS, decorrentes da Emenda Constitucional 95 — que criou um “teto de gastos” para as despesas federais com saúde e educação— contribuíram para piorar o quadro geral no Brasil.
“A assistência primária piorou, com milhares de pessoas morrendo, e houve a desassistência de outras políticas“, afirma Gulnar. “Isso aconteceu não só por causa da pandemia, mas porque a política do Ministério da Saúde se desestruturou e parou de financiar programas exitosos, como o de saúde mental e o de alimentação e nutrição.”
A nutricionista Patrícia, por sua vez, avalia que as metas podem parecer distantes porque são robustas, isto é, planejam reduzir drasticamente a incidência de alguns males de saúde na população. No entanto, conforme ela, isso não acompanha o indicativo de ações concretas para tal, como a elaboração de leis ou outros marcos regulatórios. “Há pontos que perpassam a agenda regulatória, mas são muito tímidos. O documento não se posiciona de forma efetiva sobre a necessidade de uma agenda regulatória, estabelecida por lei, decreto e que tenha monitoramento e fiscalização”, conclui.
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