O Joio e O Trigo

Danone faz lobby para alterar a Política Nacional de Alimentação e Nutrição

Corporação francesa contratou consultoria para chancelar documento que defende que seus próprios produtos sejam “direito” de todos os brasileiros. Investida é intensa no Ministério da Saúde, mas também já rendeu audiência pública na Câmara

Em 31 de maio de 2022, a Danone bateu na porta do Ministério da Saúde. O motivo da visita foi a tentativa de alterar a PNAN, Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Hoje, o texto prevê nove diretrizes para a promoção dos direitos humanos à saúde e à alimentação. A corporação francesa quer incluir uma décima diretriz na política, com o objetivo de facilitar o acesso à nutrição especializada – e, portanto, aos seus próprios produtos – no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A visita de maio não foi a única. A investida começou em 11 de novembro do ano passado. De lá para cá, o Joio identificou cinco agendas da Danone no Ministério da Saúde para tratar especificamente do tema. A empresa já tentou vários caminhos, indo da área técnica ao gabinete do ministro da Saúde Marcelo Queiroga.

Em paralelo, a Danone também já conseguiu incidir no Congresso Nacional, emplacando uma audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara dos Deputados. O evento aconteceu no dia 1º de junho. 

Todo esse esforço começou no ano passado, a partir da elaboração de um documento de 21 páginas idealizado pela Danone juntamente com sua divisão de nutrição especializada, a Nutricia, e também por uma consultoria mineira chamada LitHealth, que tem outros clientes de peso no setor da saúde, como Abbott, Bayer e AstraZeneca. O título – “Sugestão para atualização e inclusão da 10ª diretriz da Política Nacional de Alimentação e Nutrição” – não deixa dúvidas das intenções da empresa. 

“Nutrição Especializada” é o nome proposto para a décima diretriz no projeto da corporação. Trocando em miúdos, a ideia é tornar a suplementação uma conduta generalizada quando o assunto é promoção da saúde, especialmente para crianças pequenas e idosos. A Danone tem em seu portfólio mais de 220 marcas voltadas especialmente para esses públicos. 

Simulando participação e independência

A construção do documento é um caso à parte. Se a participação popular é uma das diretrizes do SUS, a Danone tentou emular um processo participativo contratando um punhado de consultores  – escolhidos a dedo para carimbar a proposta. 

O grupo é formado, em sua maioria, por pessoas ligadas ao setor privado de saúde, conhecidas por defender seus interesses. É o caso de Denise Eloi, CEO do Instituto Coalizão Saúde, think tank criado em 2014 para influenciar os programas dos candidatos às eleições naquele ano e que, desde então, entoa o mantra de que o SUS só pode funcionar de maneira efetiva com a “ajuda” do setor privado.

Mas há também gestores e ex-gestores do SUS, como Erno Harzheim – apresentado no documento apenas como “Dr. Erno” –, que integrou o gabinete de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, à frente da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Em 2019, como secretário, Erno defendeu a privatização do SUS no Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. “Estamos aqui para implementar um sistema de saúde liberal. O SUS não tem que ser para todos, mas apenas para aqueles que não conseguem proteger a si próprios. Quem quiser discutir universalidade volte para o século 20.”

Parte considerável do documento da Danone é usada para destacar a metodologia supostamente participativa – e supostamente independente – que gerou a proposta de alteração na PNAN, com ênfase nas reuniões entre os consultores, que foram divididos em dois grupos. O primeiro deles, chamado de “técnico”, elaborou a proposta. Mas a Danone contratou outros sete consultores que compuseram o chamado “grupo de chancela” que, na argumentação da empresa, garantiria a máxima confiabilidade na proposta. 

Com essa história para contar, embalada em um design caprichado, a Danone passou, enfim, a apresentar seu documento a órgãos públicos.


Depois do documento chancelado, o próximo passo será apresentá-lo a órgãos e entidades públicas e privadas, para que, nas palavras da Danone, “se transforme em referência e direcionador para elaboração de diretrizes e linhas guias internas” para garantir assistência da nutrição suplementar. De acordo com o documento, as seguintes entidades deverão ser procuradas: conselhos de saúde; associação de pacientes; Congresso Nacional e Assembleias Legislativas; entidades médicas; secretários da saúde, chefes de gabinete e secretarias dos estados, municípios e do Ministério da Saúde; Agência Nacional de Saúde (ANS); e Conass e Conasems. A ideia é correr o mundo atrás de consenso. 

O Joio procurou as entidades citadas. Fora o Ministério da Saúde, nenhuma delas recebeu contato da corporação. A ANS respondeu por meio de nota

Périplo pelo Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde parece ser o foco principal da Danone. Não à toa: a pasta é responsável pela condução da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, inclusive liderando processos de atualização no texto originalmente escrito em 1999.

Em 2013, houve uma revisão na PNAN. Ao longo desse processo, a pasta conduziu mais de 20 seminários que contaram com a presença dos conselhos de participação social que existem no SUS e são, de acordo com a legislação brasileira, os espaços legítimos de discussão das políticas de saúde. Para a coordenadora da Comissão Intersetorial de Alimentação e Nutrição do Conselho Nacional de Saúde (CIAN-CNS), Myrian Coelho Cunha da Cruz,  “chega a ser uma violência pensar que existe algum grupo em separado buscando brecha [para alterar a PNAN].” Ela continua, dizendo que “nós repudiamos esse tipo de iniciativa, porque isso atropela todo um processo de discussão que aconteceu em todo o país. Myrian participou do processo de atualização da PNAN, que começou em 2010 e culminou na publicação da segunda versão em 2012. 

A Danone começou seu périplo pelo Ministério da Saúde pelo chão de fábrica, batendo na porta da área técnica da pasta, a Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN) em 11 de novembro de 2021. Depois, a empresa foi subindo de patente, digamos assim: em 4 de dezembro do ano passado, houve uma primeira reunião com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Até que em 7 de fevereiro deste ano, a empresa chegou ao gabinete do ministro Marcelo Queiroga. E, em 31 de maio, se reuniu com a Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, comandada na época por um dos assessores mais próximos de Queiroga, Daniel Pereira – que, desde meados de agosto, assumiu uma diretoria na Anvisa.

Agenda da Danone com órgãos do Ministério da Saúde

11 de novembro de 2021: Audiência sobre a Nutrição Especializada solicitada pela Danone.

4 de dezembro 2021: Reunião online da Secretaria de Atenção Primária à Saúde – SAPS com a Nutricia. 

7 de fevereiro 2022, às 11h: Reunião da Secretaria de Atenção Primária à Saúde com Cibele Costa Zanotta (corporate affairs director da Nutricia) solicitada pelo gabinete do ministro.

7 de fevereiro 2022,  ao meio dia: Reunião dos representantes do Ministério da Saúde com Erica Camargo (head de Acesso ao Mercado da Nutricia) e Mariana Kochi Arab (Public Affairs Manager da Danone). 
Obs.: Essa reunião consta na agenda do ministro Marcelo Queiroga, mas o nome do mesmo não está registrado na lista de presença.

31 de maio 2022: Reunião da Secretaria Executiva com representantes da Danone (Erica Camargo e Mariana Kochi) e Rui Nogueira (Sócio Diretor Sênior da Patri – Políticas Públicas & Politic Affairs).

As agendas deixam claro o teor dessas conversas: lobby. E a corporação francesa contou com uma empresa especializada nessa prática, a Patri, que participou na reunião junto à Secretaria Executiva do ministério. No site da Patri, a empresa descreve assim os serviços prestados aos seus clientes: “preparação para reuniões com autoridades públicas”, “formulação de estratégias em relações governamentais” e “atuação com elementos de comunicação, publicidade e assessoria de imprensa, para convencimento não apenas de tomadores de decisão, mas de formadores de opinião de forma mais simples.”

“A gente tem que reconhecer que a PNAN precisa passar por uma atualização”

A investida também já rendeu frutos no Congresso Nacional. No dia 1º de junho, aconteceu uma audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara dos Deputados. A autoria do pedido veio do próprio presidente da comissão, Denis Bezerra (PSB-CE). O tema do evento foi “a importância da nutrição especializada com foco na pessoa idosa”. Em quase uma hora e meia de sessão, o debate foi unilateral. Nem Ministério da Saúde, nem Conselho Nacional de Saúde constam na lista de convidados, na qual marcam presença dois dos consultores que chancelam o documento da Danone. O Joio entrou em contato com a assessoria de Bezerra para perguntar se ele não via conflito de interesses no evento, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

O tom foi conduzido por um caldo de discursos apocalípticos, emocionados e apelativos. Marlene Oliveira, representante do Instituto Lado a Lado pela Vida – que, por mero acaso, é financiado pela Danone – disse que “a falta de uma atenção nutricional adequada mata”, sugerindo que a nutrição especializada, uma vez incluída na PNAN, salvaria vidas. 

“A gente tem que reconhecer que a PNAN precisa passar por uma atualização, e, nessa atualização é nosso papel exigir que se inclua a nutrição especializada”, disse.

Já o médico Alexandre Kalache, que participou por videoconferência, fez questão de exibir uma foto da mãe, enquadrada em um porta-retrato, dizendo que a idosa recebeu suplementação e, “graças a esse tratamento”, esteve bem nutrida até o fim da vida.

“Ela, minha rainha, chegou até o final da sua vida sem jamais ter sofrido por subnutrição. Mas e a senhora, dona Rita, que é negra e semianalfabeta, que vive na periferia, que cuidou de tantos e agora não pode ser cuidada? Será que a senhora também não tem direito àquilo que manteve a minha mãe bem nutrida até o fim da sua longa vida centenária?”, apelou o médico, que também é presidente de um think tank, o Centro Internacional de Longevidade (ILC-BR). Para não deixar ruídos: think tank são instituições que produzem conhecimentos para práticas lobistas. 

Depois da longa exposição dos convidados da audiência, o deputado federal Eduardo Barbosa (PSDB-MG) pareceu convencido da proposta de inclusão da décima diretriz na PNAN. “Nós temos que insistir com esse aspecto econômico [da redução de gastos da máquina pública por meio da prevenção via nutrição especializada] para que a gente possa avançar”, avaliou. 

Um ensaio para essa audiência aconteceu no fim de 2021, quando o Instituto Lado a Lado pela Vida promoveu um debate sobre “a importância da nutrição especializada em todas as idades” no Global Forum, evento patrocinado, dentre outras empresas, pela Danone. 

A conversa contou com a presença de dois membros do grupo que elaborou o documento da Danone –, Felipe de Oliveira e Luciana Bahia –, além da Erica Camargo, que chefia a área  de “acesso ao mercado” na Nutricia.

O evento Global Forum, promovido pelo Instituto Lado a Lado, contou com patrocínios de peso. Imagem: Reprodução


Nutrição especializada como “direito social”?

Kimielle Cristina Silva é ex-consultora técnica do Ministério da Saúde e fez, a pedido da Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição da pasta, uma análise do documento da Danone. Ela, que é nutricionista, explicou ao Joio que a PNAN já tem um eixo de atenção nutricional, uma diretriz transversal que contempla as ações de promoção da saúde, prevenção e tratamento quando o usuário do SUS está desnutrido ou com má nutrição, “mas não necessariamente com um tipo de insumo que eles [Danone] querem”, porque a política simplesmente não faz recomendação de um produto específico, justamente porque cada caso é único. 

“Há uma interpretação equivocada sobre o papel da PNAN, como se a oferta apenas de fórmula ou nutrição especializada fosse algo preponderante no conjunto de diretrizes para cuidados que a política orienta”, avalia Kimielle. 

A nutricionista lembra que a PNAN não desconsidera os pontos de atenção levantados pelo documento da Danone, ainda que algumas informações sejam “completamente carentes de referências científicas”. 

“A PNAN reconhece os agravos nutricionais e as necessidades alimentares especiais. Isso está na política como demandas para atenção nutricional no SUS”, afirma Kimielle. Para ela, “não faz sentido uma política de alimentação e nutrição no SUS ter um viés de fórmulas.”

No documento, a Danone aborda problemas como anemia, alergias alimentares e desnutrição, que podem – e devem – ser tratados via alimentação adequada para cada caso. Kimielle explica que o aporte calórico oferecido pela suplementação também pode entrar como recurso, mas de forma pontual. 

Não por acaso, em nenhum momento o documento cita o Guia Alimentar para a População Brasileira, nem recomendações de boas práticas alimentares, baseadas em alimentos in natura e minimamente processados que, sim, garantem saúde e qualidade de vida para a maior parte dos indivíduos. 

Kimielle observa também que “não há uma justificativa baseada em evidências para a escolha da expressão ‘nutrição especializada’”, que facilmente poderia ser substituída por “suplementação”, um termo mais popular e que remete diretamente aos produtos comercializados pela corporação. 

Mas “nutrição especializada” é justamente a missão da Nutricia, divisão da Danone no Brasil que vende fórmulas. E, no site da Nutricia, a empresa convenientemente defende que a “nutrição especializada” deve ser “um direito social de todo brasileiro, desde o nascimento até a velhice”. A lógica parece ser a seguinte: se o SUS é universal e existe uma justificativa sanitária para o uso de suplementação, a tal “nutrição especializada” precisa estar no sistema público de saúde. Ou seja, prefeituras, estados e governo federal devem comprar esses produtos e fornecer à população. “Isso é uma ação política que a indústria faz há um tempo: ela interpreta as políticas de acordo com o que lhe convém”, critica Kimielle. 

Histórico de intervenções

Não é a primeira vez que a Danone se faz de lobo em pele de cordeiro. Entre 2013 e 2017 a corporação conseguiu implementar um projeto chamado ‘1, 2, 3, Saúde!’ dentro das escolas da rede pública de ensino, no qual incentivava o consumo de um produto lácteo – o Danoninho, carro-chefe da empresa – pelo menos três vezes ao dia. O programa foi desenvolvido em parceria com secretarias estaduais e municipais de educação, impactando cerca de 300 mil crianças. O argumento da empresa para a recomendação era uma quase ameaça: não consumir a quantidade recomendada pela Danone poderia resultar em agravos para a saúde. Não existe consenso científico que respalde esse tipo de afirmação. 

Depois de uma reportagem do Joio, a iniciativa foi denunciada pelo Instituto Alana e chegou a ser investigada pelo Ministério Público do Distrito Federal. No entanto, o promotor Paulo Roberto Binicheski disse não ter encontrado sinais de comunicação mercadológica abusiva direcionada a crianças ao analisar o material do projeto e a investigação foi arquivada. 

Em 2020 o Joio fez um levantamento para mapear a influência das indústrias de fórmulas infantis sobre a amamentação. Descobrimos que muitas crianças experimentam esses produtos antes mesmo de conhecerem o leite materno. 

Uma das mães, técnica em enfermagem, contou que usou a fórmula por influência direta da corporação. O resultado foi o desmame precoce do filho, aos quatro meses de idade. “Dias antes do meu bebê nascer, tive um treinamento com a equipe da Danone dentro do hospital [em que trabalhava], cuja intenção era que nós [profissionais] indicassem a nova fórmula deles. Na época, era o Aptamil Profutura e eu achei a fórmula o máximo”, relatou ao Joio.

Tentamos contato com a Danone Nutricia e com o Ministério da Saúde, mas até o fechamento deste texto  não tivemos retorno sobre os questionamentos feitos pela reportagem. 

Por Maíra Mathias

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