De “erva do diabo” a símbolo do gauchismo, patrimônio cultural do Rio de Janeiro e ultraprocessado da Coca-Cola – uma história de exploração e apropriação
Gelado, quente, tostado, verde, na praia, no frio. A erva-mate é consumida de diversas formas, no Brasil e no mundo. Quem chega a uma praia do Rio de Janeiro, seja turista ou carioca da gema, não demora a avistar um vendedor ambulante, anunciando o famoso mate gelado com limão, que se tornou Patrimônio Cultural Imaterial da cidade maravilhosa. Quase sempre ele está vestindo o clássico uniforme laranja, com a identidade visual da Matte Leão, hoje pertencente à Coca-Cola.
A corporação diz não ter nada a ver com a roupa ou com os ambulantes, mas não perde a oportunidade de fazer marketing com essa história. Quase todos os comerciais da marca são ambientados na praia, há uma série de campanhas com influenciadores cariocas nas redes sociais e já teve até concurso do melhor grito da praia.
A Coca comprou a marca em 2007, mas ela existia desde os anos 1920. Nesse período, já processava cerca de cinco mil toneladas de erva-mate por ano. Do Paraná, resolveu investir no Rio. “Foi para este país tropical, para este povo e para essas praias, que a Leão Junior criou Matte Leão, um sabor incomparável, que refresca e reanima”, anunciava a propaganda da época. Deu certo e o Matte Leão acabou virando uma espécie de metonímia entre produto e marca, como Maizena, Bombril e Gillette. Nas praias cariocas, onde tem mate, tem o uniforme laranja da Leão. No Prato Cheio, contamos mais sobre a longa jornada percorrida por esses ambulantes.
Agora, vamos para o Rio Grande do Sul, no acampamento Farroupilha, onde você terá outra experiência com a mesma erva. A paisagem e os hábitos são bem diferentes. Há neblina, frio, bandeiras do estado espalhadas por todo canto e corredores com casas de madeira, onde famílias gaúchas fazem churrasco e bebem chimarrão – a infusão quente da erva-mate, servida em uma cuia e bebida através de uma bomba, que parece um canudo de metal. As mulheres usam vestidos longos, super elaborados. Os homens vestem uma calça larga chamada de bombacha, botas e chapéus de couro, além de um lenço vermelho ou branco no pescoço.
Os trajes e o nome do evento fazem referência à Guerra dos Farrapos, que ocorreu durante o período colonial. O movimento foi liderado pela elite riograndense, insatisfeita com os impostos da época. Mas pelo menos um terço dos soldados eram pessoas negras escravizadas, que foram para a linha de frente em troca de sua libertação após o conflito. Depois de 10 anos, e sucessivas derrotas, um acordo de paz foi firmado. A elite ganhou desconto nos impostos e outras regalias. Os soldados negros ganharam balas: no Massacre dos Porongos, mais de cem foram mortos. As evidências históricas indicam que a chacina teve participação dos dois lados em conflito, exatamente porque nenhum deles tinha interesse na libertação dos escravizados.
O acampamento é uma espécie de expressão máxima do gauchismo hoje. Também é o que alguns pesquisadores chamam de espaço de tradição inventada. O movimento tenta, há dois séculos, criar e manter viva a ideia de que o gaúcho “raiz” é viril, destemido e tem um passado de vitórias grandiosas e feitos heróicos. Que come churrasco e não só toma chimarrão, como toma para si o papel de inventor e guardião deste hábito.
O que não é verdade, e exclui uma história de mais de mil anos, que pouca gente conhece. Hoje, no contexto gaúcho, chimarrão é sinônimo de orgulho e tradição, mas nem sempre foi assim. Nas culturas de língua espanhola, chimarrão quer dizer selvagem, não domesticado, amargo. É um adjetivo, usado para chamar um cão sem dono e uma bebida sagrada, de povos vistos como selvagens pelos colonizadores.
A erva-mate é, antes de tudo, um símbolo da tradição dos povos indígenas. Os primeiros registros de uso do mate nessas terras que hoje chamamos de Brasil são de 1554. Mas é provável que os Guaranis e os Guaíra já consumissem as folhas e os talos da planta muito antes da chegada dos colonizadores. Hoje, os rituais de batismo, que envolvem coleta, preparo e consumo da erva, também são uma forma de manter a cultura e cosmovisão indígena vivas. Mesmo após séculos de uma longa história de genocídio, apropriação e apagamento.
Planta de poder
“Nosso conhecimento é muito rico e alguma parte o juruá [homem branco] sempre rouba. Tipo o gaúcho, sempre fala que o chimarrão é dele, mas não, não foi criado por eles. Quem primeiro consumiu foi o indígena”, lembra Santiago Franco, no documentário Carijo. Ele é cacique da Terra Indígena Mbya Guarani Yvy Poty, que fica em Barra do Ribeiro (RS).
Os Guarani migram desde tempos pré-coloniais, em busca de condições adequadas à expressão da sua cultura e modo de ser, o que inclui o acesso a alimentos estratégicos para a comunidade. A erva-mate é um deles. O ritual de batismo acontece só uma vez por ano, no verão, mas o consumo da erva no dia a dia também é um hábito.
Janaina Delane, indígena do povo Guarani Mbya e professora da rede estadual de ensino de Santa Catarina, conta como acontece o ritual: “No primeiro dia, os homens vão até a mata e pegam a árvore desde o pé. Eles cortam as folhas da erva-mate e trazem pra dentro da Casa de Reza. Quando eles chegam, cortam [a erva] em tirinhas e deixam numa vasilha, pra sapecar. Nesse momento, os Guarani fazem ali o momento do ritual, de dançar, fazer o canto. Num segundo momento, as mulheres ficam responsáveis por socar no pilão a erva-mate. Daí no terceiro dia ocorre o batismo.”
Você deve ter notado que alguns desses termos, como batismo e reza, não têm origem indígena. Janaina, além de já ter participado desse e de outros rituais, também os estudou, e explica que a adoção de termos ligados à Igreja Católica foi uma ferramenta para manter viva a cultura e identidade Guarani durante o período colonial – uma espécie de sossega leão na sanha missionária.
É preciso diferenciar os dois grandes movimentos de colonização do Brasil para entender como esse modo de vida indígena foi sendo comprometido ao longo dos séculos.
O primeiro movimento, nos séculos 16 e 17, é a invasão de espanhóis e portugueses, que também trouxeram africanos escravizados para o país. É também a época em que se deram as reduções jesuíticas. Elas ocuparam a maior parte do território de origem da erva-mate, e um objetivo importante para os colonizadores era dizimar tudo aquilo que fosse interpretado como insurgente, demoníaco e selvagem. José Otávio Catafesto, etnoarqueólogo, pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lembra, no documentário Carijo, que o mate era visto como uma “erva do diabo” pelos jesuítas.
“Ela estava presente nos transes que os pajés estão realizando. Os pajés são a principal figura de oposição à chegada dos jesuítas. Então a erva-mate, num primeiro momento, aparece como aquela erva dos que estão se rebelando contra os jesuítas. Aqueles que estão fazendo propaganda de que os índios têm que abandonar os padres, matar os padres. E quando eles fazem essas reuniões, eles estão usando a erva-mate. Porque a erva-mate, como a gente observa nas aldeias hoje, ela é o propósito das reuniões, da fala. É o cachimbo e a erva-mate, são dois elementos integradores, então o jesuíta reprimiu.”
No entanto, o deus Dinheiro mudou a visão dos jesuítas. No século 18, eles perceberam que o mate poderia desenvolver a economia da região e dar lucro às reduções. Os jesuítas tiveram o monopólio do cultivo e do beneficiamento durante algumas décadas, até serem expulsos do Brasil. O sagrado deu lugar ao mercado. Foi assim a primeira onda de apropriação do mate.
“Tipo o gaúcho, sempre fala que o chimarrão é dele, mas não, não foi criado por eles. Quem primeiro consumiu foi o indígena”
A erva-mate é endêmica, ou seja, existiu na forma silvestre, exclusivamente em uma região de floresta da América do Sul, com concentração em uma área que hoje corresponde a parte do território do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul.
A formação dos ervais nativos dessa região é entendida como um processo natural. A intervenção humana também agiu sobre sua formação e distribuição, povos indígenas de todos os cantos manejam as florestas em que vivem. Mas nunca, até onde se tem registro, as populações nativas comprometeram a existência do que hoje chamamos de biomas. Então, até o início do período colonial, existiam imensos ervais nativos na América do Sul. Realidade que mudou após a chegada dos jesuítas.
Nesse período, já existia uma economia local da erva-mate, mas ela estava muito distante da indústria em que se transformou. O Marcos Gerhardt, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), explica que “participava dessa atividade econômica uma população numerosa de caboclos e de outras gentes relativamente pobres que viviam da extração da erva-mate”.
Esses caboclos a que Marcos se refere são filhos de imigrantes europeus e povos nativos do Brasil ou trazidos à força da África. Mas o professor explica que o que define esse grupo é “o seu modo de vida, a sua religiosidade, ele é parte de um grupo social que não era proprietário de terras, como os criadores de gado nos pampas, ele vivia basicamente da pesca, caça, da pequena agricultura e da extração da erva-mate”. Ou seja, os caboclos tinham conhecimento sobre a floresta, sua espacialidade, seus recursos e perigos, o que fazia deles exímios especialistas.
Só que essa população começa a ser prejudicada quando, na metade do século 19, se promulga a Lei de Terras, já em um segundo movimento de imigração, no qual diferentes populações europeias vieram para o Brasil, como alemães e italianos. As terras foram privatizadas – os ervais, também. Os povos tradicionais foram perdendo o sustento e o modo de viver.
“Na primeira imigração, a população que veio para o sul do Brasil ficou mais concentrada no litoral e nos campos aqui do Rio Grande do Sul, e eles se dedicaram mais à pecuária, já nessa segunda imigração, ela passou a ocupar, a partir do século 19, as regiões de floresta, que são as regiões onde estavam os ervais nativos”, explica Marcos. Foi aí que a erva se tornou um produto conhecido pela população migrante, que aprendeu com os povos tradicionais a preparar e a consumir a bebida que depois ficou conhecida como chimarrão.
O monopólio dos jesuítas começou a ser substituído pelo oligopólio dos barões do mate. Vem daí a Matte Leão.
De barão a CEO
Até o início dos anos 1930, a erva-mate era extraída apenas dos ervais nativos, mas a intensa exploração dessas áreas pressionou os grandes empresários do setor a investirem em monocultivos e estruturas de beneficiamento mais modernas e ágeis. Sapecar a erva no carijo – estrutura tradicional que mantém as folhas em cima de uma fogueira, para secá-las – virou coisa do passado.
No mesmo período, a Matte Leão lançou a erva tostada, para infusão em água quente, vendida em um pacote, como conhecemos hoje. Tudo feito industrialmente, moderno e prático. Para facilitar o chá da tarde de uma classe média urbana que estava preocupada em demonstrar seu lugar no mundo através de hábitos de consumo que se espelhavam na classe média colonizadora.
A partir daí não existiu um acontecimento significativo no Paraná que não estivesse ligado de alguma forma à exploração econômica da erva-mate – ela fez parte da origem da riqueza das principais famílias do estado e criou as condições para a formação de uma pequena aristocracia paranaense: os barões do mate. Dentre eles está Agostinho Ermelino de Leão Júnior, o fundador da Matte Leão.
Esse grupo se tornou tão relevante para a história oficial do estado que, hoje, há diversos pontos turísticos dedicados a preservar essa história. Um deles é o Palacete dos Leões, em Curitiba, construção faraônica em que Agostinho Ermelino de Leão Júnior viveu por alguns anos.
O mate está para o Paraná como o café para São Paulo, o cacau para a Bahia e a cana-de-açúcar para os demais estados do Nordeste.
O que a história oficial geralmente omite é que não existe crescimento econômico de uma pequena parcela da sociedade sem que alguns (muitos) paguem por isso. O principal exportador de erva-mate do século 19, Manoel Antonio Guimarães, dono da Companhia Matte Larangeira, também foi o principal gerenciador do tráfico de escravizados no Paraná durante o período do comércio ilegal.
Ele contava com uma rede de relações políticas que favorecia o negócio. Primeiro conseguiu autorização do governo imperial para explorar ervais nativos dentro de terras indígenas localizadas onde hoje fica o Mato Grosso do Sul. Depois, conseguiu permissão para explorar a área por 10 anos. E depois, por mais 10 anos. Assim, a Companhia Matte Larangeira se tornou uma multinacional e foi considerada como um Estado dentro do próprio Estado. Um império econômico e político.
Assim como a floresta, os Guarani foram explorados nesse processo.
Relatórios do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão fundado em 1910 e substituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) quase 60 anos depois – apontam que os indígenas Guarani-Kaiowá representavam 75% dos trabalhadores dos ervais.
Em tese, eles recebiam alguma remuneração. Mas, na prática, era só uma promessa vazia. Todas as suas despesas eram descontadas deste valor e eles precisavam comprar comida, roupas e outros itens básicos em armazéns da corporação. De repente, eles estavam com dívidas, vivendo em alojamentos insalubres, trabalhando inalando fumaça do sapeco e carregando fardos de erva-mate com mais de 150 quilos. É exatamente o que hoje chamamos de trabalho análogo à escravidão.
Foi assim que se deu a produção da erva em diversas das grandes propriedades dos barões do mate. No caso da Companhia Matte Larangeira, a situação perdurou da inauguração até o encerramento de suas atividades, em 1949.
Só no final deste século o mercado da erva-mate começou a perder força. A oferta se tornou maior que a demanda, então o preço caiu. Com a chegada da Revolução Verde e da soja, passou a valer mais a pena plantar o grão.
“Com esse movimento da agricultura moderna nos anos 1970, a soja estava com uma cotação alta, aí [os produtores diziam] ‘ah, vamos derrubar os ervais e vamos plantar soja porque dá mais lucro’. Claro que o agricultor, se ele tem pouca terra, 20 a 30 hectares, e está precisando de um dinheiro, é muito mais atraente ir plantar soja do que ter uma propriedade mais diversificada”, conta o biólogo Moisés da Luz, no documentário Carijo.
No entanto, há uma empresa que conseguiu sobreviver ao fim da era de ouro dos barões do mate e segue sendo líder em seu segmento: a Matte Leão.
Em uma entrevista à revista Forbes, o atual CEO da Leão, Marcelo Correa, diz que o sucesso da marca está na oferta de produtos inovadores e práticos. “O hábito de consumo do chá é menos por temperatura e mais por acesso, por indulgência, por combinação, por versatilidade, conveniência, disponibilidade de produto. Quanto maior a disponibilidade, maior a conveniência, maiores as formas de consumo e acesso ao produto, aí você vai desenvolvendo o hábito de consumo.”
Há um século, a erva tostada, embalada em um pacote de papel, era inovadora e prática. Agora, há chá em cápsulas, guaraná Leão sabor açaí, linha funcional, infantil, pré-treino, drink, produtos que têm muitos outros ingredientes além de água e erva-mate, como açúcar e uma série de aditivos alimentares. Nem Guarani, nem carioca, nem gaúcho: o mate entrou na família dos ultraprocessados.