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Rotulagem: Justiça derruba decisão da Anvisa que estendeu prazo de adaptação

Atendendo a um pedido do Idec, juiz concede liminar que determina cumprimento das novas normas e fala que agência deveria “resistir ao lobby”

A Justiça Federal derrubou a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que concedeu prazo adicional de um ano para a adaptação às novas regras de rotulagem de alimentos processados e produtos ultraprocessados. Em decisão publicada nesta quarta-feira (15), o juiz Marcelo Guerra Martins afirma que a norma aprovada em outubro de 2023 é “inegavelmente parcial, imperfeita e, sobretudo, inadequada em termos econômicos”.

A liminar atende a um pedido do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que no final de janeiro apresentou uma ação na qual aponta uma série de fragilidades na resolução aprovada pela diretoria colegiada da Anvisa. Na argumentação, o Idec fala em captura corporativa da agência e diz que o interesse privado violou o interesse coletivo. 

Em entrevista ao Joio, o Instituto também chamou a atenção para o fato de que os diretores  decidiram de forma apressada. Não por acaso: a intenção era que a nova resolução entrasse em vigor no dia em que as regras de rotulagem passariam a ser obrigatórias para todos os produtos ultraprocessados que não têm embalagens retornáveis.

A decisão concedida pelo titular da 13ª Vara da Justiça Federal em São Paulo vai na mesma linha. “É preciso resistir ao lobby de agentes econômicos que tentam compensar a própria incapacidade por meio de um protecionismo estatal que prejudica a coletividade, seja em relação aos consumidores, seja em termos de retardar a prevalência, na economia, das empresas dotadas de maior agilidade, eficiência, produtividade e capacidade de adaptação.”

Aprovadas em 2020, as novas regras de rotulagem preveem a padronização das tabelas nutricionais e a adoção de lupas na parte frontal das embalagens para avisar sobre o excesso de sal, açúcares e gorduras saturadas. Anos de disputas precederam a aprovação da resolução que estabeleceu essas mudanças. A indústria participou ativamente desse processo e conseguiu uma série de vitórias, dentre elas um longo prazo para se adaptar. Mas não foi o suficiente. 

Em outubro de 2023, quando a norma começaria a valer para todas as empresas de grande porte, foi aprovada uma nova resolução estendendo em um ano o prazo de adaptação. 

“É preciso resistir ao lobby de agentes econômicos que tentam compensar a própria incapacidade por meio de um protecionismo estatal que prejudica a coletividade”

Oficialmente, o argumento da Anvisa é de que algumas empresas precisariam utilizar embalagens antigas, que estavam encalhadas por causa da pandemia. O curioso é que essa é a mesmíssima argumentação que a indústria apresentou em uma série de pedidos de escoamento de embalagens inadequadas – também em encontros com representantes da Anvisa. 

Na ação, o Idec apontava que a decisão tomada pela diretoria colegiada atropelou os pareceres de duas áreas técnicas da agência, que não viam razão para estender o prazo de implementação. Enquanto isso, os argumentos da indústria foram totalmente incorporados pelos diretores. 

Também chama atenção o fato de a resolução aprovada em outubro ter como base um procedimento interno aberto apenas três dias antes, sem passar por consulta pública – o regimento interno da Anvisa aceita a dispensa de consulta pública apenas em casos de extrema urgência. 

Além disso, o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, assinou o despacho para a publicação da resolução no Diário Oficial da União antes mesmo da aprovação formal do texto pela diretoria colegiada.

“Trata-se de mais um elemento que demonstra o açodamento com que a modificação foi levada a efeito”, continua o juiz. Para ele, o prazo de três anos para que as empresas se adaptassem à nova rotulagem “foi suficientemente extenso”. E não combina com o atropelo de mudar as regras do jogo sem ouvir a sociedade. “Não entendo razoável, portanto, utilizar-se de uma suposta urgência para afastar o salutar e indispensável mecanismo da consulta pública.”

Ao derrubar a resolução, o juiz deu prazo de 60 dias para que a norma seja cumprida por todos. 

“A guinada perpetrada pela Anvisa em relação ao novo marco regulatório para as embalagens dos alimentos processados e ultraprocessados causa, no mínimo, estranheza. Como explicar que a partir de 57 solicitações isoladas se altere, em poucos dias, uma política pública destinada a abarcar milhares, quiçá milhões, de empresas?”, questiona o magistrado. 

O Joio descobriu, via Lei de Acesso a Informação (LAI), que além dos pedidos mencionados pelo juiz, a indústria fez uma peregrinação pela Anvisa, com o objetivo de influenciar “a edição, a revogação ou a alteração” da resolução que criou a nova rotulagem. É o que denuncia a ata de uma reunião que ocorreu em agosto do ano passado e que envolveu representantes da Ambev e do alto escalão da Anvisa. 

A empresa foi à agência advogar em causa própria, mas não estava sozinha na batalha. Pelo menos sete associações que representam a indústria de ultraprocessados se uniram para lutar pela prorrogação. Dentre elas estão a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), a Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos (Abiam) e a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir). 

O advogado do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Leonardo Pillon, considera que a liminar é uma resposta importante para neutralizar as estratégias de influência política sobre o poder público. 

“A imoralidade administrativa da Anvisa ao ter submetido sua função regulatória aos interesses da indústria, como já havíamos alertado em outubro passado, é extremamente danosa à reputação de uma agência conhecida por ser técnica e independente”, avalia. “De qualquer modo, essa decisão demonstra que as atividades políticas de corporações reguladas e suas coalizões, grupos de fachada, entre outros, precisam ser devidamente depuradas pelo sistema jurídico-institucional ante o déficit democrático fruto dessas atividades.”

Joio procurou a Anvisa, que afirmou não ter sido intimada sobre a decisão judicial. A assessoria da pasta informou que “por isso, não pode se manifestar sobre o processo sem conhecer o conteúdo”.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Abia pontuou: “Cumpre esclarecer que, ao contrário do que afirma a referida publicação, a Abia não solicitou, em nenhum momento, qualquer prorrogação do prazo para implementação da rotulagem nutricional ou para esgotamento de embalagens e rótulos. Desde a publicação das novas regras, imprimimos todos os esforços no apoio às Associadas e ao setor produtivo para o melhor entendimento e adaptação à nova rotulagem nutricional, considerando os prazos previstos. Para tanto, foram realizados treinamentos para as empresas e ações educativas junto aos consumidores no sentido de esclarecer e orientar sobre a leitura e o entendimento dos novos rótulos, por meio da plataforma Olho na Lupa (olhonalupa.com.br).”

* Nota da redação: A reportagem foi atualizada, às 17h45 de 15 de fevereiro de 2024, para incluir a resposta da Anvisa sobre o caso.

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