Quem dá as cartas nos eventos de saúde nem sempre é a saúde

Dominados pelas corporações, alguns dos grandes congressos científicos são um mundo desconhecido para quem interessa: a sociedade. É neles que se decide o que será de nossos corpos

O auditório de 600 lugares está repleto. A iluminação, o som, a estética, tudo transpira modernidade. É cool. Os convidados entram sob gritos e aplausos, e até os ternos estão livres do ar retrô que deles se espera, passando o recado de que quem está ali é gente séria, porém antenada. O êxtase total se dá com a entrada em cena do apresentador Rodrigo Bocardi, que vai mediar um debate ao final do qual todos deverão votar para escolher o palestrante que defendeu o ponto de vista mais convincente.

São três. Um médico experiente. E um médico e uma médica belos e jovens, com bagagem. Durante mais de uma hora, simula-se um debate cuja conclusão está dada: a proteína é fundamental para pacientes de UTI. E, para isso, nada melhor que o produto da Nestlé Health Science. O público se entretém com o ritmo acelerado do evento, que, como outros, conta com o oferecimento de um lanche cujos indicadores nutricionais são espantosos, mais ainda porque oferecido em um encontro sobre nutrição e saúde.

“Para comemorar, ao término dessa abertura, vamos todos confraternizar com um gostoso coquetel oferecido pela Farmoquímica”, havia dito, na véspera, o presidente do evento, o médico Dan Waitzberg. O Ganepão foi realizado em junho de 2017 de maneira luxuosa no Centro de Convenções Rebouças, da Faculdade de Medicina da USP. Havia logotipos de empresas por todos os lados: cartazes, placas e até adesivos colados no piso e nas paredes do elevador.

“Saborosos lunch box serão servidos a todos os participantes por cortesia da Sodexo. Lunch box também serão servidos durante os simpósios com grandes temas e especialistas na hora do almoço”, acrescentou. “Vamos visitar a maravilhosa exposição científica da indústria, que está com muitas novidades, lançamentos e surpresas.” E, por fim, “agradecemos de uma forma muito especial a todas as empresas e laboratórios nacionais e internacionais que, mesmo enfrentando grandes dificuldades, mais uma vez acreditaram, investiram e apoiaram”.

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O Ganepão se apresenta como um dos maiores congressos da área de nutrição. Os organizadores dizem ter atraído 2.579 congressistas para 755 aulas, com 306 palestrantes.

Os grandes eventos da área de saúde são um mundo desconhecido para quem interessa: a sociedade. Nos últimos meses, comparecemos a alguns deles, inclusive o Congresso Internacional de Nutrição, em Buenos Aires, com farta distribuição de Coca-Cola. Dinheiro, prestígio acadêmico e projeção política são três dos motivos mais frequentes para que existam. Quem os assiste paga caro em busca de novos conhecimentos ou de mais um carimbinho no currículo. É desses encontros que médicos, enfermeiros e nutricionistas extraem ideias que serão aplicadas em hospitais, clínicas e consultórios. Em você, em mim, em nós todos.

Em tese, esses congressos são separados entre uma feira comercial e uma programação científica. Na parte comercial, profissionais bem pagos fazem filas por brindes caros ou ridiculamente baratos – não importa o valor, na verdade. Na parte científica, idem. São sacolas, algumas de boa qualidade, repletas do que se supõe sejam evidências científicas selecionadas por uma empresa interessada em promover um produto.

Sem fazer qualquer esforço, sem ficar em filas, saímos desses eventos com muitas sacolas lotadas com: vários suplementos alimentares para idosos; uma amostra grátis de glutamato e uma colher medidora para colocar o Ajinomoto no lugar do sal; um pacote de 672 gramas de um curioso “alimento com proteína isolada de soja” e dois sachês de um milk shake (sem milk) que permite substituir refeições; um imã de geladeira para quem é milk lover; um sachê de whey protein; muitos probióticos; um purê de frutas; salgadinhos e biscoitos; canetas que permitiriam aos monges copistas reescrever todo o acervo da Biblioteca de Alexandria; e por aí vai.

É claro que tudo isso vem acompanhado de um luxuoso material.

– “A ciência dos substitutos parciais de refeição”, diz um belo encarte da Herbalife, recheado de estudos e de certificados de órgãos públicos que em tese comprovam que os bons efeitos desses produtos não são conversa de programa vespertino de TV

– A Biogaia traz a palavra de um médico da USP sobre os benefícios do lactobacilo reuteri e a conclusão de que o consumo regular de probióticos é perfeito para doenças gastrointestinais

– A Aché informa que o Colikids foi testado em 3.800 bebês e teve a eficácia comprovada: deve ser usado diariamente para garantir o equilíbrio da flora intestinal

– A Nestlé nos ensina que, se estamos obesos, é porque somos indulgentes e não sabemos adequar o tamanho das porções. E também ressalta uma pesquisa que comprova que os adolescentes são sedentários e comem de maneira errada

– A Bauducco indica o uso do Cereale, uma linha de biscoitos supostamente saudáveis, em absolutamente todas as refeições: tudo cientificamente embasado

– O Gatorade não deixa dúvidas de que não é só uma embalagem bonita: há um instituto fundado em 1985 que desenvolve belas pesquisas comprovando que o isotônico tem impacto positivo em esportes de alto rendimento – imagine o que ele não faz com seu treininho amador na academia

– A Associação Brasileira de Leite Longa Vida entrega um encarte sob medida feito pela revista Saúde falando sobre “A redenção do leite”, essa bebida milenar, segura e fundamental para que a gente não morra de repente

– A Ajinomoto prega os benefícios de trocar o sal pelo glutamato, essa molécula milagrosa

Poderíamos ficar até o fim dessa década listando exemplos. Tudo isso, que está na parte comercial dos eventos, salta para dentro da programação científica graças a debates patrocinados pelas empresas. O assunto é pautado pelos interesses de uma corporação, que não necessariamente são os interesses da sociedade. Os estudos selecionados acabam por refletir as ideias do patrocinador, reforçando os benefícios de um determinado produto. E os estudos que mostram outra realidade acabam ignorados.

No Congresso Internacional de Nutrição, havia palestras da Ajinomoto na parte patrocinada. E havia palestras da Ajinomoto disfarçadas de universidade na parte científica – foram cinco, no total.

No Congresso da Associação Brasileira de Nutrologia, em setembro, um dos simpósios foi patrocinado pela farmacêutica Novo Nordisk, interessada em difundir a substância emagrecedora liraglutida, liberada no ano passado pela Anvisa. Logo na entrada os médicos receberam o Saxenda e um material que listava os benefícios do medicamento na redução de peso.

Os responsáveis pela palestra, com a chancela de um grupo de estudos sobre obesidade do Hospital das Clínicas da USP e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, apresentaram os estudos financiados pela empresa, que mostram que o Saxenda regula tanto o apetite homeostático, ou seja, aquele natural do funcionamento do corpo, quanto o hedônico, associado ao prazer.

As informações sobre o fato de 20 a 30% dos pacientes apresentarem náusea no começo, e de 5 a 10% seguirem com o sintoma, são atenuadas. Eles dizem ainda que é preciso manter a dose máxima mesmo depois de atingir o peso ideal para não correr o risco de um retrocesso. E que não se deve trocar o Saxenda por outros produtos, que certamente não funcionam tão bem.

A pergunta que temos de fazer é: este assunto seria tratado se não fosse a demanda de uma empresa? Um medicamento que faz tanta gente vomitar, que tem uma lista imensa de efeitos colaterais, receberia esse apoio todo da classe médica se não fosse pelo patrocínio? Pesquisadores que vão na contramão têm dificuldade em organizar um evento tão grande e, assim, têm menor chance de propagar os resultados de trabalhos.

Assistimos a um sem-fim de debates sobre a obesidade. O pressuposto em comum é de que não há maneira de perder peso sem a ajuda de algum produto – no geral, um produto caro – ou de uma cirurgia.

“É mito ou verdade a história de que não se pode aquecer o azeite de oliva?”, pergunta uma reportagem publicada no portal UOL, respondendo logo em seguida que você pode ficar tranquilo: um estudo recém-divulgado pela Abran mostra que o azeite pode ser usado em altas temperaturas sem liberar nada tóxico e que mesmo aquecido continua a ser uma opção mais saudável que os concorrentes. Faltou ao texto apenas informar que a pesquisa foi divulgada em um simpósio patrocinado pela marca de azeites Andorinha, que carrega no rótulo um selo da Abran.

Precisamos de arroz com feijão?

“O fato de ter uma declaração de interesses não significa que o evento seja ruim. A única coisa é que vou olhar com meu olhar crítico. Mas tenho certeza que a evidência pode ser muito boa”, diz o pediatra Mauro Fisberg, professor da Escola Paulista de Medicina e coordenador da Força-Tarefa Estilos de Vida Saudáveis do International Life Sciences Institute (ILSI), uma organização mantida por dezenas de empresas para pautar a produção científica e a definição de políticas públicas.

Ele afirmou ter uma das listas de “abertura de interesses” mais extensas do Brasil, mas rejeitou a ideia de que a indústria possa manipular resultados e assegurou que, mesmo em aulas patrocinadas, jamais aceita interferências.

Nos dois dias seguintes a nossa conversa, em agosto, ele comandou dois simpósios-satélite no Congresso da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban). Um deles da Danone, com a qual mantém uma relação antiga, e outro da Piracanjuba. Ambos enfatizaram a importância dos lácteos em nossa vida e criticaram “modismos alimentares” que levam a eliminar, entre outros, os lácteos. Uma das integrantes da equipe de Fisberg apresentou evidências de benefícios de consumo do achocolatado e criticou a decisão dos Estados Unidos de passar a oferecer leite puro à criançada nas escolas.

Um dos slides colocava destaque sobre a vantagem em termos de nutrientes desse produto em comparação com os sucos. Mas dava menor relevo a informações sobre a grande diferença calórica e de gorduras, que são justamente os pontos desfavoráveis à patrocinadora.

O material de apoio entregue pela Piracanjuba enfatizava a necessidade de escolher produtos de bom teor nutricional. No mesmo evento, a empresa estava lançando uma composição de leite desnatado e xarope de cacau ou baunilha que prometia reduzir a um terço o açúcar presente nesse tipo de bebida.

No simpósio patrocinado pela Danone, Fisberg exibiu as principais conclusões de um estudo financiado pela mesma corporação sobre os lanches feitos entre refeições. Uma das constatações é de que é preciso reforçar o consumo de lácteos, carro-chefe da Danone. “Será que todo mundo come arroz e feijão? Será que precisamos realmente comer arroz com feijão? Será que se eu comesse macarrão, se eu comesse batata, se eu comesse outros alimentos, não estou tendo uma alimentação ideal? Não. Parece que criança precisa sempre comer aquilo que é idealizado.”

Mitos e mitos

O Congresso da Sban foi realizado no hotel Maksoud Plaza, próximo à Avenida Paulista, tendo a Nestlé como maior patrocinadora. O mote do encontro era “Mitos e fatos”, lema que a indústria de alimentos tem adotado com força nos últimos anos, à medida em que cresce a oposição a produtos com altos teores de sal, gordura e açúcar.

O presidente do congresso, Antonio Herbert Lancha Júnior, queixou-se que a nutrição está caminhando pela fé, e não pela ciência. Lancha, professor da Escola de Educação Física e Esportes da USP, responde a um processo sob acusação de se apropriar de um caro equipamento da universidade pública em seu consultório particular.

Dentro desse congresso ocorreu um simpósio patrocinado pela Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas. A professora Maria Cecília de Figueiredo Toledo, aposentada da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, fez uma defesa enfática dos adoçantes, aditivo fundamental das bebidas diet e light que se vê constantemente associado a suspeitas de doenças. A docente, palestrante em eventos da Coca-Cola sob o mesmo mote, instou as profissionais de saúde a atuar nas redes sociais contra pessoas que elenquem evidências negativas nesse segmento.

“Como pode uma substância que causa danos sérios a crianças, a gestantes, ser aprovada no mundo todo?”, indagou, em tom assertivo. Em duas palestras em dois dias consecutivos, ela garantiu que os adoçantes são plenamente seguros e buscou desmerecer evidências em contrário. “As diferentes opiniões e posicionamentos existem por desinformação, preguiça de ler um artigo científico ou então pura ideologia. Eu não quero, eu não gosto e acabou.”

Em um dos encontros, Maria Cecília deveria desfazer mitos em torno do consumo de açúcar, fazendo troça da ideia de que esse produto é um veneno. “Se tudo isso fosse verdade, essa pessoa que vos fala, que consome açúcar há mais de cinquenta anos e adoçante há pelo menos mais de trinta, era um fantasma. Estaria morta.”

Porém, ela não apresentou evidências de que o açúcar não faça mal: disse apenas que é o excesso de consumo que é prejudicial, o que remete à estratégia recorrente das empresas de responsabilizar o indivíduo. “Está todo mundo louco? Está todo mundo querendo matar a população? Alguma coisa está errada. Será que é isso mesmo?”

Os profissionais de saúde que assistiram às palestras de Maria Cecília podem ter se convencido de que açúcares e adoçantes são benéficos e plenamente seguros. E podem passar a recomendar isso aos pacientes. Para um evento que opera sobre a dicotomia “mitos e fatos”, eu esperava poder ouvir outras opiniões e formar a minha. Durante três dias de Congresso da Sban, porém, não vimos nada que pudesse afetar os interesses do setor privado.

Não podemos dizer que o patrocínio de empresas ao encontro é a razão para isso, mas temos todos os elementos para afirmar que a agenda de debates é direcionada a interesses das corporações, nesse e em outros eventos.

Em 2012, o Congresso Mundial de Ciência de Alimentos e Tecnologia, realizado em Foz do Iguaçu, suscitou um escândalo. A presidente do evento, Glaucia Pastore, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, assinou uma carta na qual determinava o cancelamento de um debate sobre publicidade e obesidade infantil porque “causaria inconvenientes com potenciais patrocinadores do evento”. Ela também avisou a Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos, destinatária do documento, que do contrário a organização global da área cancelaria o convênio para a realização do evento.

O roteiro das palestras é fácil de entender, e se torna exaustivo: a empresa que financia aquela sessão entrega o material com evidências científicas sobre os benefícios de seus produtos e os palestrantes se encarregam de reforçar os argumentos. As mesas não são de debate, mas de soma: não há discordância. São, basicamente, um compilado de material favorável à patrocinadora. Algumas são um Google médico bem refinado. Há palestras dadas por altos quadros. E há outras sofríveis, conduzidas por pessoas que nem sequer têm aquele tema no currículo Lattes.

“Isso é muito bom. Eu não sabia. E é cheio de vitaminas. Vou recomendar para os pacientes”, disse uma nutricionista ao final de uma palestra no Ganepão. A Yakult trouxe do Japão uma pesquisadora incansável na tarefa de listar os benefícios desses produtos. O instituto com o nome da empresa, criado em 1955, tem 300 pesquisadores dedicados em tempo integral a descobrir novos benefícios. A lista não para de crescer: câncer, doenças de pele, alergias, estresse. Um pequeno milagre confinado em 65 mL. Se este é um evento científico, é importante que os profissionais conheçam a dose adequada de ingestão. “Por uma questão de marketing não falamos qual é a dose. A dose é suficiente. O que está dentro da embalagem de Yakult é suficiente para a ingesta diária”, respondeu a palestrante, advertindo ainda que outros produtos com as mesmas alegações não surtem o mesmo efeito: nada de genéricos.

Também não recomende a seus pacientes genéricos de medicamentos probióticos. “O probiótico tem que ter nome e sobrenome. Não adianta colocar tudo no mesmo saco”, advertiu Bruno Paraguassu Barreto, pediatra e professor da Universidade do Estado do Pará, durante o talk show “Lactobacilos, amigos para sempre!”, financiado pela indústria farmacêutica Aché. Ele foi categórico sobre os probióticos vendidos por farmácias de manipulação: “Isso é perigoso. Não usem. É risco.”

Ao lado dele, o presidente do congresso, Dan Waitzberg, deu o testemunho pessoal: esses produtos funcionam muito bem para prevenir a diarreia do viajante. “O rhamnosus logo mais será uma estrela”, disse, em referência ao lactobacilo que serve como base para um dos produtos promovidos pela empresa. “Nós não estamos aproveitando o reuteri direito. Sinceramente.” Ele arrancou risos da plateia informando que na segunda-feira seguinte teria de ir a Brasília para um debate promovido pelas indústrias farmacêutica e de alimentos especiais. O motivo, segundo ele, é que a Anvisa até hoje não se convenceu das vantagens dos probióticos e tem dificultado o lançamento de produtos. Em seguida, ele avisou aos jovens profissionais: “A Anvisa vai precisar de trabalhos sobre probióticos. Se tiverem interesse em fazer, é hora de fazer. Vai precisar de trabalhos brasileiros.”

Por João Peres

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