Evento reforça ideia de comida como commodity e tem campanha contra a regulação por saúde
Há uma crônica do escritor norte-americano David Foster Wallace (1962-2008) que descreve a visita dele a uma feira estadual em Illinois, no Meio-Oeste dos Estados Unidos. O texto “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo” amalgamou um modo peculiar de olhar para grandes eventos que contam com exposições, convidados e gente vinda de tudo quanto é canto. O que muitos enxergam como uma grande reunião para celebrar qualquer coisa, fazer negócios ou apenas dar de curioso é, para ele, um retrato de esquisitices sutis e escusos absurdos.
A lembrança desta crônica permeou a passagem deste repórter pela ANUFOOD Brazil 2019, realizada entre 12 e 14 de março, no Expo Imigrantes, em São Paulo, uma das maiores feiras da indústria alimentícia do mundo. Em outras palavras, é como se todo evento de grandes proporções remetesse, de algum jeito, ao cenário que Foster Wallace narra numa espécie de impressionismo apegado a descrições minuciosas.
O evento brasileiro tinha, igualmente como o escritor fala de Illinois, “um aspecto ornamentado, inocente, infinito e agressivamente Especial.” A feira era sobre comida, e os estandes ofereciam cursos e palestras, apresentavam novas gororobas inventadas pela indústria e faziam de tudo, enfim, para ganhar a atenção dos 7.395 visitantes que passaram por ali. Estar lá transmitia uma sensação parecida ao que norte-americano disse sobre Illinois: “ter algo parecido com ataquinhos epiléticos à nossa volta, enlouquecido pela necessidade de conseguir absorver tudo de uma vez só.”
Não era pouca coisa: 130 expositores diferentes e 200 marcas de 20 países da indústria de alimentos. Algumas já populares entre os consumidores — sobre as quais, inclusive, já falamos no Joio, como a Danone — e outras, de fora, que buscavam se tornar conhecidas por aqui. Em comum entre todas elas, os mesmos problemas no mundo inteiro relacionados à produção de alimentos: ou cadeias com infrações ambientais e trabalhistas ou produtos oferecidos com muito açúcar, aditivos, gorduras e sal, ingredientes que, em excesso, podem levar ao desenvolvimento de doenças crônicas, como câncer, diabetes e obesidade.
A profusão de estandes, propagandas e amostras de produtos era tão grande, mas tão grande que um fato importante, e contraditório, poderia passar despercebido. Na maior feira de alimentos já realizada no Brasil, enquanto muitas pessoas e empresas tentavam apresentar a melhor novidade alimentícia de todos os tempos da última semana, almoçar era um desafio ingrato. Ser jornalista, ora ou outra, pode nos render algumas benesses —o contrário é mais frequente, entretanto nem sempre é assim— e, no primeiro dia, foi possível contar com um buffet, com arroz, feijão, misturas e saladas, comida de verdade, servido para quem participou da entrevista coletiva de abertura do evento.
Mas o mesmo não poderia ser dito sobre a sequência da feira. Linhas gerais, de um lado, havia a profusão de furgãozinhos —ou food-trucks, no vocabulário hipster— vendendo fast-foods, hambúrgueres, temakis, tacos mexicanos, tudo com muita maionese, catupiry e gorduras e sal. De outro, o único restaurante que oferecia opções mais saudáveis, com aquilo que se costuma e se deve comer no dia a dia, como bem falavam nossos pais, cobrava a bagatela de 50 taóqueis por uma refeição — era possível se servir à vontade, mas o salgado do preço costuma refletir no gosto da comida nessas horas.
Essas eram as opções na principal praça de alimentação da ANUFOOD Brazil. Além delas, havia alternativas, como uma a que este repórter recorreu. Um salgado e uma salada de fruta por 21 reais, menos da metade do preço do buffet, se servir de consolo; no mínimo, para aguentar até a hora de voltar para casa e poder se alimentar de verdade. Outras opções eram “lanches naturais”, de novo com muita maionese, recheados com atum em lata e o sal mandando lembranças para os hipertensos.
A indústria de alimentos se vangloria em dizer que está na vanguarda do enfrentamento de problemas como a fome mundial. Vira e mexe, e tem algum porta-voz das empresas do setor dizendo: “Pesquisas mostram que em poucos anos mais de 10 bilhões de pessoas estarão vivendo na Terra. Como todas essas pessoas podem ser alimentadas? A indústria é parte da solução e não do problema.” Ela até pode ajudar, mas também poderia se preocupar em oferecer um bom almoço para os convidados de seus eventos.
Em uma pérola que traduz um raciocínio torto em poucas palavras, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (Abia), João Dornellas, arrematou durante o Congresso da ANUFOOD Brazil. Ele mostrou a foto de um bolo de fubá e sua lista de ingredientes —farinha de trigo, fubá, leite, açúcar, ovos, óleo, leite e fermento— para criticar, muito grosseiramente, diga-se de passagem, o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde. “O bolo de fubá, porque tem mais de cinco ingredientes, é considerado um alimento ultraprocessado, que não é saudável nesse Guia Alimentar. Vocês acham que um bolo de fubá é um ultraprocessado?”, disse Dornellas, na quarta-feira (13).
Já que na ocasião, não tivemos oportunidade, vamos mostrar o que diz o documento do governo federal: “Uma forma prática de distinguir alimentos ultraprocessados (…) é consultar a lista de ingredientes (…) Um número elevado de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias (gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores) indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados.”
Um bolo de fubá feito em casa, portanto, não é um produto ultraprocessado. Em que pese ter cinco ou mais ingredientes, o que neste caso não faz a menor diferença, não há qualquer aditivo de nome alienígena que o levaria a ser considerado como uma gororoba inventada pela indústria que se parece com comida. E muito bem que seria gostoso, mas a reportagem do Joio não encontrou, se houvesse um bolinho de fubá caseiro à venda na Expo Imigrantes.
O futuro das marcas
Entre as centenas de estandes no evento, um deles chamava especial atenção. Com uma estética agressiva, remetendo a uma espécie de circo dos horrores, a Japan Tobacco International (JTI), megacorporação de cigarro cujo um dos proprietários é o governo do Japão, alertava os passantes sobre os riscos do “excesso de regulação sobre as marcas”. A pequena exposição, fruto da campanha “The Future of Brands” (“O Futuro das Marcas”, do inglês), trazia informações da regulação sobre a compra e venda de cigarros para dizer que o mesmo pode acontecer com a indústria de alimentos. A ideia era fornecer subsídios para que as empresas que vendem mercadorias reconhecidamente danosas à saúde pudessem barrar políticas públicas no setor.
Quem viu o filme “Obrigado por fumar” (2006) acharia as investidas de Nick Naylor (Aaron Eckhart), um porta-voz e lobista das indústrias de cigarro, um amador perto do que era apresentado ao público.
“A regulação excessiva está em ascensão. Não importa em qual setor você trabalhe, seus efeitos lhe afetarão. Exemplos recentes mostram que acumular regulamentação não melhora as coisas. Esta abordagem equivocada leva danos a marcas, empresas e setores inteiros. A boa regulação acontece quando ela é bem pensada, com uma consulta adequada, levando em consideração todas as possíveis consequências. Se você está preocupado com a proteção de suas marcas registradas e seus negócios ou se simplesmente acredita na liberdade de escolha dos consumidores, nós o convidamos a participar do debate”, diz em inglês (tradução da reportagem) a campanha.
Reclamar das medidas tomadas contra as empresas de cigarros é tão velho quanto andar para a frente. Desde 1999, quando a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco foi proposta na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), as companhias do setor tentam fazer de tudo para influenciar, confundir ou mesmo impedir as ações de governos contra a compra e venda de seus produtos, que, vale lembrar, estão relacionados ao desenvolvimento de vários tipos de câncer, problemas cardiovasculares e outras ene doenças. Em vigor desde 2005, o tratado tem 168 países que o subscrevem e foi um dos que tramitou mais rápido na ONU.
É comum que, em contrapartida, as indústrias da área defendam a autorregulação de suas atividades, uma estratégia que vem se repetindo no setor de alimentos. Ocorre que, mostram evidências científicas, as iniciativas das empresas são muito aquém do necessário para melhorar o ambiente de saúde e promover, como eles mesmos dizem, melhores escolhas de consumidores. Parêntesis: esta é uma boa lembrança para o diretor-presidente da Anvisa, o cardiologista William Dib, que afirmou, durante o evento, que nem todas as questões relacionadas à saúde devem passar por regulação.
Comida como commodity
Toda a parafernalha de um evento de proporções como a ANUFOOD Brazil esconde, na verdade, que o propósito da coisa é business, isto é, fazer negócios, ganhar dinheiro, embolsar a bufunfa. A estimativa da organização é que foram feitas mais de mil reuniões comerciais entre os participantes. O valor gerado, entre as trocas e acordos, teria sido de 10 a 15 milhões de dólares, em apenas três dias. A comida é atualmente uma commodity forte, capaz de produzir negócios lucrativos para muitas pessoas, enquanto falta para tantas outras.
Nesse cenário, o Brasil ocupa um papel chave para os idealizadores da feira. “O objetivo é estabelecer a ANUFOOD Brasil como uma plataforma de exportação para a indústria brasileira de alimentos e bebidas sob o tema ‘O Brasil alimenta o mundo’”, afirmou o alemão Herbert Marner, diretor-executivo da Koelnmesse GmbhH, companhia organizadora da feira e de suas edições mundo afora. A fala dele reflete um pensamento comum no meio corporativo. Segurança alimentar, fome e má nutrição são problemas que podem ser resolvidos com o laissez faire. E o Brasil deve ser o fazendão que alimenta outros países.
Essa perspectiva, no entanto, vai de encontro a evidências científicas que dizem o contrário. Não só é importante a regulação dos governos, para manter a qualidade dos alimentos, como é fundamental que a comida seja produzida próxima de seus locais de consumo. Chama-se a esta ideia de circuito curto. Isto é o que garante, de certa forma, a segurança alimentar. Imagine, por exemplo, o cenário em que um país que exporta toneladas de carnes, frutas e vegetais entra em guerra. A consequente queda na produção levaria a problemas de desabastecimento em todos os outros que compram dele.
Mas a ideia de que a comida deve servir como mera commodity tem seus ferrenhos defensores aqui no Brasil. Um deles é o ex-ministro da Agricultura (governo Lula) Roberto Rodrigues, embaixador especial da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) para o cooperativismo, que palestrou no Congresso da ANUFOOD Brazil. Ele costuma repetir em aparições públicas um dado da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo o qual a oferta de alimentos no mundo precisa crescer 20% nos próximos dez anos para que a população mundial não seja atingida pela fome.
Para que isso aconteça, de acordo com o raciocínio de Rodrigues, é necessário que a capacidade de crescimento da agricultura do Brasil, na próxima década, seja de 41%. O embaixador da FAO é um ferrenho defensor das exportações do agronegócio, referendando que o país seja uma espécie de celeiro planetário. “Precisamos crescer [a produção agropecuária] para assumir a responsabilidade que o mundo está nos oferecendo”, afirmou no evento.
Outra entusiasta desta ideia é uma de suas sucessoras, a atual ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (governo Bolsonaro), Tereza Cristina. “Segurança alimentar não é sinônimo de autossuficiência e é um tema que não pode se limitar às fronteiras nacionais”, disse durante passagem no evento. Na feira, ela fez uma palestra relacionando as discussões de segurança alimentar à derrubada de imposições alfandegárias. Bem, ela também defende a premissa de que vacas podem evitar incêndios. Talvez, seria melhor se advogasse por menores preços de almoço na Expo Imigrantes.