Nestlé lança calculadora que induz a consumir açúcar em excesso

Ferramenta online usa limites mais altos para o açúcar de produtos industrializados, orientando a consumir quase o dobro do proposto pela OMS

A Nestlé lançou uma calculadora com dois pesos e duas medidas. Sob o mote de ajudar a termos vidas “mais saudáveis”, a ferramenta online divulgada em meados de maio pode induzir a consumir muito açúcar.

“Diminuir os ingredientes que a população consome em excesso e estimular as pessoas a realizarem escolhas conscientes são prioridades para a companhia e reiteram nosso compromisso de transparência com a sociedade”, afirmou a gerente de Nutrição da Nestlé Brasil, Juliana Lofrese, em material divulgado pela corporação na internet.

Inicialmente, a ferramenta divide o açúcar utilizado em preparações caseiras do açúcar que já vem nos produtos processados e ultraprocessados.

Para o primeiro grupo, a Nestlé usa o limite de ingestão diário proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 50 gramas. Mas, para o segundo, ou seja, para os próprios produtos, o limite é mais alto: 90 gramas.

Em nota, a Nestlé alegou que a intenção da calculadora não é fazer uma análise nutricional completa.

“Na ferramenta, há duas formas de calcular o percentual de açúcar contido em determinado item e sua relação com a recomendação diária: em preparações (receitas) ou em um produto industrializado. No primeiro caso, existe a recomendação da Organização Mundial da Saúde, cuja referência se baseia no açúcar livre (que é utilizado para o preparo da receita).

No caso dos produtos industrializados, a diferença entre os limites se deve ao fato de que, quando as empresas declaram os açúcares na tabela nutricional, é especificamente a declaração de açucares totais e não adicionados. Os açúcares totais declarados consideram os açúcares adicionados intencionalmente para dar sabor ao produto, somados àqueles que vêm intrínsecos na matéria-prima, caso do leite e frutas (lactose e frutose, por exemplo). Com base nisso, a Nestlé adotou como referência os 90g, para que o consumidor tenha uma informação real.”

Tomando esse ponto do raciocínio, um produto como a bolacha Bono, com 50 gramas de açúcar, preenche pouco mais da metade do limite diário definido pela corporação. Mas responderia por todo o limite diário proposto pela OMS. E extrapolaria o limite proposto por pesquisadores independentes, que sugerem que o mais prudente é ficar em torno de 25 gramas por dia.

O problema é que a interpretação da Nestlé vai na contramão do que define a OMS. Ao revisar as diretrizes oficiais sobre o consumo de açúcar, em 2015, a organização declarou que o ideal é manter um limite de 10% das calorias diárias, o que, no caso de adultos, resulta em algo próximo de 50 gramas.

A OMS deixa claro que não diferencia açúcares adicionados de açúcares livres, como se permite a corporação: para as diretrizes oficiais, o que você coloca no café e o que come no biscoito entram na mesma conta. Como não fosse suficientemente claro, o documento ainda repisa que pouco importa se o açúcar foi adicionado pelo fabricante, por um cozinheiro ou diretamente pelo consumidor.

A única exceção são os alimentos in natura: “Os açúcares livres se diferenciam dos açúcares intrínsecos que se encontram nas frutas e verduras inteiras frescas. Como não há provas de que o consumo de açúcares intrínsecos tenha efeitos adversos para a saúde, as recomendações da diretriz não se aplicam ao consumo dos açúcares intrínsecos presentes nas frutas e verduras inteiras frescas.”

A página da Nestlé cita como referência para o limite de 90 gramas de açúcar a Federação de Alimentos e Bebidas da Europa. Nela, considera-se que os açúcares de alimentos in natura não são diferentes.

“Ainda que não se tenha constatado que nem carboidratos nem açúcares tenham qualquer papel especial no desenvolvimento de sérias doenças, como diabetes, é importante monitorar a ingestão, já que, se consumido em excesso da demanda energética, o açúcar pode contribuir para a obesidade e pode causar cáries.”

É fácil entender como o limite de 90 gramas pode levar a erro, mesmo se ignorarmos a recomendação da OMS. A Nestlé alega levar em conta a soma de açúcares naturalmente presentes nos ingredientes com o açúcar adicionado aos produtos.

Vamos pegar o exemplo do Nescau. O produto tem 75% de açúcar e o restante são aditivos. Não há qualquer açúcar naturalmente presente. Então, por que 30 gramas de açúcar de Nescau seriam diferentes de 30 gramas de açúcar do pacotinho?

Embora a empresa alegue que a calculadora não faz análise nutricional completa, os resultados exibidos às pessoas dão indicações concretas. Essa é a conclusão de uma consulta sobre a bolacha Bono, por exemplo.

A calculadora da Nestlé considera que o Nescau Prontinho Light, com 12 gramas de açúcar, é parte de uma dieta saudável. Mas, usando o perfil de nutrientes sugerido pela Organização Panamericana de Saúde, a realidade é diferente.

Considerando que no geral se consome açúcar tanto em industrializados como em preparações caseiras, como fazer com que a calculadora da Nestlé seja útil? É preciso criar uma fórmula, cruzar os dados de um açúcar e de outro e chegar a um limite intermediário?

Outra dificuldade no uso da ferramenta é que muitas empresas ainda se recusam a declarar as quantidades de açúcares em cada produto. Para tentar entender se há ou não excesso de açúcar, o consumidor precisa fazer uma prova de adivinhação cruzando a tabela de informação nutricional, onde o açúcar aparece sob o nome “carboidratos”, junto com outros ingredientes, e a lista de ingredientes em si, que sempre vai do mais ao menos utilizado.

A própria Nestlé declara, atualmente, a quantidade de açúcar por porção. Mas, nas embalagens, a empresa não estabelece um percentual de consumo, alegando que “valor diário para açúcares não estabelecido”.

Por João Peres

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