Na América do Sul, Nestlé é ‘cara ou coroa’ para decidir alertas em rótulos

Harvey Dent era conhecido, nas histórias do Batman, como um promotor de Justiça excepcional até que, em algum momento, um incidente —com várias versões, a depender do autor— deformou sua face e mudou sua vida. Ele então se tornou o oposto, um criminoso cruel, e ganhou uma nova alcunha, pela qual é mais conhecido: Harvey Dent é também o Duas Caras. Imprevisível e ambivalente, o vilão se caracterizou por tomar decisões com o resultado de um jogo de cara ou coroa.

Essa menção ao famoso personagem não é à toa: o nome e o feitio dele servem para uma conhecida multinacional de alimentação na América do Sul.

Jogue uma moeda para o alto. Cara ou coroa. A depender do resultado, a Nestlé tem um posicionamento sobre os alertas na rotulagem frontal de alimentos. Para conferir, não é necessário ir muito longe. Do outro lado da América do Sul, no Chile, o discurso da empresa é diametralmente oposto ao que ela faz pelas bandas de cá, no Brasil. Por aqui, a multinacional de alimentos é contrária à adoção de selos em formato de polígonos pretos na rotulagem frontal de alimentos. Por lá, não só é adepta, é ainda mais, uma entusiasta.

A rotulagem frontal está em discussão na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) brasileira. E até o momento, inclinou-se pela adoção de um modelo em conformidade com o que recomenda a Organização Pan Americana da Saúde (Opas). A Opas sugere a colocação de selos em formato de octógonos pretos com os dizeres “alto em” nas embalagens, com o objetivo de alertar sobre o excesso de sal, gorduras e açúcar e produtos processados e ultraprocessados.

A medida é considerada uma das frentes de combate à epidemia global de várias doenças crônicas não transmissíveis, sendo obesidade a principal causa delas, decorrentes da má alimentação.

Modelos de avisos em rotulagem em discussão no Brasil

As divergências dentro da Nestlé ficam claras em declarações de altos executivos nos dois países. Já mostramos aqui no Joio que o vice-presidente de Assuntos Jurídicos, de Compliance, Assuntos Institucionais e Relações Governamentais da empresa no Brasil, Flávio de Souza, tem no mínimo antipatia pelo selo de polígonos pretos.

“Não vamos nunca aceitar e vamos até o fim. Vamos fazer o que tivermos que fazer, se o Estado pretende tutelar o consumidor naquilo que ele pode ou não consumir”, ele disse durante o fórum da Fispal Tecnologia, uma das mais importantes feiras tecnologia de alimentos e bebidas no país, em São Paulo, em 26 de junho.

Bem diferente, entretanto, é o que pensa o colega sul-americano de trabalho, o presidente-executivo da multinacional no Chile, Leo Leiman. Quase três anos exatos antes da afirmação do cara da Nestlé no Brasil, o país andino promulgou de forma pioneira, em 27 de junho de 2016, uma lei sobre a rotulagem frontal de alimentos. E o cara da Nestlé no Chile reconheceu recentemente que ela “não é algo ruim”.

A regra chilena determina a padronização das informações nutricionais em alimentos e diz que o rótulo de produtos processados e ultraprocessados deve ter avisos, com octógonos pretos, sobre o excesso de sal, gorduras e açúcar.

Modelo do selo de rotulagem de alimentos no Chile

“A lei de rotulagem é uma regra que foi muito bem aceita aqui no Chile pela população em geral, inclusive é um item de exportação. Vemos que ela está caminhando para países como Peru, Equador e Uruguai. Em muitos países do mundo, a lei é estudada como uma das soluções e propostas para ajudar os consumidores”, afirmou Leiman, em 21 de abril de 2019, em uma entrevista ao jornal chileno El Mercurio. Ele falou mais: “A lei é algo interessante, inovador, e está sendo exportada. Portanto, não é algo ruim.”

De fato, a regra tem entusiastas por todo o continente. Além de Peru e Uruguai, que adotaram há pouco um formato de alerta parecido ao do Chile, o Canadá discute usar um modelo semelhante. O Equador, por sua vez, mudou de ideia de última hora e dispõe de um sistema diferente, em formato de semáforo.

Os blocos comerciais da América Latina poderiam adotar um mesmo tipo de alerta, acrescentou o executivo da Nestlé chilena ao El Mercurio. “(…) É uma necessidade que existe para um país exportador como Chile, para países da Aliança do Pacífico, do Mercosul, que tenhamos uma lei, um conceito comum para todos.”

Essas afirmações soam sugestivas para os executivos das empresas de alimentação no Brasil. Os testas de ferro daqui não só insistem em depreciar os alertas com polígonos pretos, também maldizem aqueles que os utilizam.

Em um caso para lá de exemplar, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoolicas (Abir), Alexandre Jobim, criticou, em uma reunião do Parlamento do Mercosul, em 29 de abril, o formato de alerta nas embalagens de alimentos em vias de adoção pelo Uruguai. “Como o Uruguai decide sozinho e como o Mercosul vai fazer para se ajustar?”, ele perguntou.

“Temos quatro países sentados em uma mesa para negociar o tema. Um deles já tomou a frente da discussão. Os outros países podem aprender com ele e harmonizar a decisão [sobre rotulagem]”, rebateu na ocasião o brasileiro Fábio Gomes, assessor regional de nutrição da Opas, em uma afirmação em sintonia com o presidente da Nestlé chilena.

O exemplo do Chile, ainda, rebate o discurso de que a colocação dos selos pode ter efeitos econômicos negativos. Por aqui, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) encomendou um frágil estudo, de metodologia no mínimo questionável, que fala no fechamento de 200 mil vagas de emprego. Por lá, tanto não houve recrudescimento da economia quanto evidências científicas mostram que os alertas ajudam a fazer melhores escolhas. Os chilenos estão evitando itens ultraprocessados para fazer opções menos industrializadas ou in natura.

Por fim, engana-se quem pensa que o vizinho, por ser menor em extensão e população do que o Brasil, teria menos relevância em uma discussão continental. No quesito fatia de mercado, a indústria de lá é tão grande quanto a daqui. É muito mais do que líder de vendas nos dois casos. Se, de um lado, o território que a Nestlé cobre com seus produtos é da Amazônia aos Pampas, a diferença em área dos Andes à Patagônia, de outro, tem sua compensação. A filial chilena conta exportações para ao menos 28 países.

Outro lado

A equivalência em relevância econômica nos dois casos, no entanto, torna difícil entender por que executivos de duas filiais de uma mesma empresa têm, oficialmente, posicionamentos tão distintos. O Joio questionou sobre o assunto as assessorias de imprensa da Nestlé no Chile, no Brasil e também na Suíça, onde está a matriz.

Em uma nota em inglês enviada sede da multinacional, a Nestlé declarou (em tradução livre) que está comprometida em fornecer aos consumidores informações nutricionais precisas e transparentes com a rotulagem de produtos. Com base na ciência sólida, isso deve estar em um formato que os ajude a fazer escolhas informadas sobre alimentos e bebidas.

Também disse que “cumpre integralmente a lei de rotulagem de alimentos de 2016 no Chile, assim como fazemos com todas as outras legislações relevantes em todo o mundo.

A empresa afirmou que apoia sistemas de alerta que consideram o valor nutricional completo de um produto e defendeu uma “abordagem unificada” para regiões específicas, sem mencionar exatamente quais. Continuaremos a nos envolver com as autoridades de saúde e outras partes interessadas no desenvolvimento de esquemas e regulamentos de rotulagem frontal em diferentes regiões e países ao redor do mundo.

A filial brasileira também respondeu à reportagem. “A Nestlé é favorável à adoção de um modelo de rotulagem frontal no Brasil. Nesse sentido, a empresa vem atuando, dentro do marco do processo regulatório em andamento na Anvisa, para defender aquele que seja informativo ao consumidor”, declarou, em nota enviada pela assessoria de imprensa. Globalmente, a Nestlé defenderá sempre o modelo de rotulagem que agregue informações às pessoas”, concluiu o comunicado.

Os chilenos não responderam até a publicação deste texto.

Nestlé notifica Joio duas vezes após publicações sobre ultraprocessados da empresa

(Imagem do destaque: Denise Matsumoto/O Joio e O Trigo)

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