Medo: esse foi o fator fundamental para a decisão da Anvisa de rejeitar a colocação de alertas nos rótulos de comida-porcaria. A informação consta do relatório final produzido pela Gerência-Geral de Alimentos da agência, que permite entender a medida adotada em meados de setembro pela diretoria colegiada.
Sistemas de rotulagem frontal têm sido testados no mundo todo como parte do pacote de medidas adotadas para frear o aumento dos índices de obesidade e doenças crônicas (diabetes, hipertensão, câncer). Uma das possibilidades é a adoção de alertas, nos moldes do que foi implementado pelo Chile em 2016. Agora, sabe-se que esse sistema, embora tenha se mostrado o mais eficaz em desencorajar o consumo de comida-porcaria, foi deixado de lado porque causou “medo” entre os participantes de uma pesquisa.
No último dia 12, os diretores aprovaram a abertura de consulta pública sobre a adoção de uma lupa na parte frontal das embalagens com o intuito de avisar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. O modelo, inspirado no que será implementado no Canadá, descartou os alertas defendidos por uma coalizão da sociedade chamada Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, bem como o semáforo proposto pelos fabricantes de alimentos industrializados.
Durante a reunião, a gerente-geral de Alimentos, Thalita Antony de Souza Lima, afirmou que a lupa se saiu melhor que o semáforo nos estudos conduzidos na Embrapa e na Universidade de Brasília. Ela nada falou, porém, sobre a comparação dessas lupas com os alertas, nem mencionou o elemento “medo” como grande motivador da decisão.
O Joio solicitou à Anvisa esses estudos. Passadas duas semanas, a assessoria de imprensa da agência comunicou que as pesquisas ainda não estão publicadas, mas que o relatório final trazia alguns elementos para compreender o tema.
O relatório, de fato, descreve brevemente o que foi encontrado em cada pesquisa. Nos dois casos, os modelos de alerta funcionaram muito melhor que o semáforo da indústria e levemente melhor que a lupa defendida pela Anvisa, especialmente na hora de avisar sobre os produtos menos saudáveis.
O ponto-chave para a decisão da agência surgiu no levantamento da Universidade de Brasília, feito online com 2.400 pessoas. “Para identificar a opinião, preferência e atributos como confiança, desconforto e medo dos participantes em relação aos modelos de rotulagem nutricional frontal, cada participante respondeu ainda outras perguntas. O único atributo que apresentou diferença significativa entre os modelos testados foi ‘a presença desse selo me causou medo’, com um escore médio mais elevado no grupo do triângulo preto em relação ao grupo do semáforo nutricional.”
De novo, não há elementos concretos que expliquem a decisão da agência. O relatório não cita de que maneira o elemento “medo” apareceu nas falas das pessoas, nem em que quantidade. Não sabemos se uma, duas, mil pessoas mencionaram essa questão. Nem de que maneira: o medo é algo que as levaria a deixar de comprar o produto ou as levaria a ignorar os alertas?
Transparência pela metade
Mais uma vez, a Anvisa se alinha a um discurso repetido da indústria de comida-porcaria, que alega que advertências no rótulo criariam pavor entre as pessoas e acabariam por desinformá-las. Esse elemento apareceu nos estudos conduzidos pelas empresas em grupos focais, que são grupos da sociedade previamente selecionados de acordo com determinadas características para a condução de uma pesquisa qualitativa. Podem ser, por exemplo, homens de meia-idade e baixa renda que vivem em regiões metropolitanas com mais de três milhões de habitantes.
A indústria não divulgou as transcrições das conversas mantidas nesses grupos focais, que permitiriam entender como a pergunta foi feita e como o elemento “medo” apareceu. A Anvisa segue, por ora, a mesma prática. Considerando que a consulta pública a respeito fica aberta até novembro e que uma decisão é esperada para o começo de 2020, pode ser que o teor completo dessas pesquisas seja conhecido somente quando uma decisão já estiver tomada.
Os grupos focais conduzidos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) não constataram o medo como um tópico que as pessoas levariam em conta na hora de decidir pelo consumo de determinado produto.
“Foi quase unânime a preferência pelos alertas. Mesmo entre pessoas que preferiam o semáforo, nas horas em que tinham de escolher um produto, não conseguiam chegar a uma conclusão só com base no semáforo”, afirma Ana Carolina Fernandes, professora do Departamento de Nutrição da UFSC.
Previsível
A decisão tomada após uma extensa revisão das evidências científicas pode parecer plenamente objetiva. Só que não. Já se sabia que os alertas funcionariam melhor que o semáforo porque isso se deu em qualquer estudo em qualquer parte do mundo. Pelo menos no que diz respeito a informar sobre produtos que devem ser evitados.
Já se sabia, também, que as lupas se sairiam melhor que o semáforo porque foi o que aconteceu no Canadá. E era de se esperar que os alertas tivessem um grau de compreensão ligeiramente melhor que as lupas, também com base no que se descobriu no Canadá.
Até aqui, estamos falando de uma decisão objetiva: o elemento que funciona melhor deve ser o escolhido. Mas a Anvisa partiu a uma decisão com um grau de subjetividade. “Medo” era algo que poderia surgir a depender da pergunta que fosse feita. E é um elemento nada objetivo. Você pode ter medo de algo que não assusta outras pessoas. E a sua reação diante do medo pode ser diferente da de outras pessoas.
Se esse era um aspecto a ser levado em conta, de antemão já era possível saber que o único sistema que se salvaria seria o de lupas. Não era necessário gastar tempo e recursos com duas pesquisas.
“A lupa é um exemplo de elemento gráfico que transmite uma ideia diferente, de ampliar uma informação, de facilitar sua visualização e de sugerir uma procura e avaliação de outras informações”, alega a agência.
Onde queremos chegar?
O Ministério da Saúde publicou em 2014 o Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda expressamente evitar ultraprocessados (biscoitos, salgadinhos, macarrões instantâneos, bebidas em pó etc.). O Uruguai foi na mesma linha dois anos mais tarde. E decidiu, depois disso, criar políticas públicas que fossem coerentes com essa mensagem. Por isso, adotou alertas como os criados no Chile, já que são o melhor elemento para informar sobre a necessidade de não consumir comida-porcaria.
A Anvisa, porém, nunca havia deixado claro aonde queria chegar com essa decisão: a ideia era promover um ranqueamento de produtos comestíveis ou comunicar que esses produtos devem ser evitados, como orienta o Guia? O relatório finalmente responde a essa questão.
“Considerando que o objetivo regulatório é facilitar a compreensão da rotulagem nutricional pelos consumidores brasileiros, a GGALI entende que o modelo com a lupa é mais coerente com este objetivo do que os modelos que transmitem a ideia de alerta”, conclui. “Esse modelo facilita o entendimento da rotulagem nutricional, possibilitando escolhas autônomas e conscientes pelos consumidores, com menor potencial de gerar sensação de medo em relação aos modelos com símbolos de alerta ou advertência.”
O prazo para envio de contribuições à consulta pública vai até 6 de novembro. Até lá, se você superar esse medo dos alertas, pode dizer à agência como conseguiu.