A forte diminuição dos estoques de alimentos afeta diretamente os pequenos produtores e drena a capacidade do Estado de regular os preços do mercado
Gasto desnecessário ou um elemento estratégico da soberania alimentar? O debate sobre a função dos estoques públicos de alimentos é antigo. Responsável pelo desmonte absoluto, o atual governo parece não ter dúvida de que é preciso fechar os armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Como mostramos, 27 das 92 unidades já foram fechadas ou estão em vias de. Não há nenhuma garantia de que as demais serão mantidas abertas. Mas, afinal, qual o impacto disso para quem não é agricultor? A resposta é simples: comida.
Linhas gerais, os estoques públicos são uma maneira de o Estado proteger agricultores e cidadãos dos riscos provocados pelos imprevistos da atividade agrícola (chuva, seca, geada). No Brasil, os armazéns da Conab jamais chegaram a concorrer com o setor privado. Atualmente, respondem por menos de 2% da capacidade do país em estocar milho, soja, arroz, feijão. Ainda assim, cumprem uma função importante na garantia de compra dos produtores (grandes e pequenos) e de revenda.
A formação de estoques públicos estratégicos é o lastro da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), que desde 1966 protege os produtores rurais dos tapas que só a mão invisível do agronegócio sabe dar.
A PGPM tem a prerrogativa de influenciar os preços do mercado de produtos agrícolas e atuar ativamente — por meio da venda dos estoques — em momentos de queda potencial ou efetiva de preços. É, sob essa perspectiva de proteção dos pequenos e médios produtores, um programa social fundamental para garantir não só a concorrência no campo, mas a própria sobrevivência da agricultura de base.
Contudo, para funcionar, a PGPM precisa dos estoques e os estoques, por sua vez, demandam uma estrutura de armazenagem vasta e organizada. Não é o caso do Brasil. E talvez nunca tenha sido, mesmo levando em consideração que a rede de armazéns públicos já foi muito maior.
Do inferno ao céu, do céu ao inferno
Olhar para o histórico da armazenagem pública de alimentos no Brasil é interessante para entender de modo mais amplo as políticas estatais em torno da comida. Em geral, quase nada sobrevive por muito tempo e as oscilações de governos selam a sorte da maioria dos projetos.
Em 1906, os governos de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo decidiram, pela primeira vez, criar um estoque público de café para influenciar na regulação de preços. No entanto, a primeira iniciativa federal, batizada de Comissariado de Alimentação Pública (CAP), é de 1918. O nome foi alterado para Superintendência de Abastecimento em 1919, mas as atribuições foram mantidas: gerenciar estoques públicos de alimentos e inaugurar uma política de preços mínimos no país.
Surgiram outras iniciativas pelo caminho. Getúlio Vargas criou a Comissão do Abastecimento em 1939 e a Comissão Federal de Abastecimento e Preços (Cofap) em 1950, sempre com a mesma finalidade. Em 1962, sob João Goulart, o Brasil ganha as duas estatais que comandaram o abastecimento público brasileiro até a criação da Conab: a Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem) e a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal). Os militares admirados por Jair Bolsonaro tinham o abastecimento como uma questão estratégica e não cogitavam retirar o Estado da regulação do setor de alimentos.
Desde o final da década de 1980, o aparato público de abastecimento é acusado de ocupar um espaço que deveria ser gerido pela iniciativa privada. Com empurrões fortes de Fernando Collor e FHC, a estrutura brasileira de armazenagem está descendo um barranco aos tropeços.
Somente entre 1991, ano do início das atividades da Conab, e 2002, a companhia perdeu 60% dos armazéns, passando de 349 para 140. Houve uma breve recuperação a partir de 2003: o número de armazéns chegou a 180 em 2013. Desde então, como já mostramos, a tendência de redução voltou fortalecida.
Ladeira abaixo
Dados sobre os últimos 30 anos contam uma história de altos e baixos, mas com um final triste, de desmonte e desvalorização. Milho e arroz, duas das principais culturas estocadas, ajudam a remontar a trajetória.
Em julho de 1987, ainda antes da criação da Conab, o Brasil mantinha mais de sete milhões de toneladas de milho em estoques estratégicos. Seis anos depois, em 1993, depois dos duros cortes de orçamento e da redução da capacidade de armazenagem decorrentes da criação da companhia, o estoque era 92% menor, com pouco mais de 500 mil toneladas.
Ocorreu o mesmo com o arroz: em julho de 1988, havia mais de cinco milhões de toneladas armazenadas. Em julho de 1993, pouco mais de 800 mil toneladas. O ponto mais dramático para os estoques das duas culturas veio no final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que reduziu drasticamente tanto o número de funcionários quanto a capacidade de armazenagem da Conab. Em julho de 2003, a empresa provisionava apenas 350 mil toneladas de milho; em 2004, os estoques de arroz sequer chegavam a duas mil toneladas – 0,0004% do estoque de 1988.
Na virada para o governo Dilma Rousseff, ápice das compras públicas para outros programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), os estoques chegaram a um novo pico. Em julho de 2010, ainda na gestão Lula, a Conab chegou a ter mais de 5,5 milhões de toneladas de milho armazenadas. A curva do arroz chegou ao ponto mais alto em 2012, com pouco mais de 1,5 milhão de toneladas.
Quebra de milho, grande confusão
O fechamento de unidades armazenadoras desagrada até mesmo quem entende que faz sentido promover mudanças na Conab para alinhá-la aos propósitos do atual governo. Francisco Olavo Batista de Sousa, técnico da Gerência de Levantamento e Atualização de Safras, foi indicado pela assessoria de comunicação da empresa por ser um dos funcionários mais antigos. “Eu advogo a tese de que o governo tem que trabalhar com estoques estratégicos. É assim em todos os países desenvolvidos do mundo, especialmente onde o agronegócio é um setor importante para o PIB nacional”, ele diz. Ele não é contra o fechamento de armazéns, mas entende que a estatal deve manter controle sobre os estoques.
“Como o milho é um cereal da maior relevância para o futuro do país, se ocorrer uma quebra de safra nós vamos nos transformar num importador de milho. Mas não é qualquer importador: é o maior importador do mundo. Por isso, o governo precisa ter estoques estratégicos. Tem gente aqui que advoga que se faltar é só importar. Contudo conhecendo a burocracia, conhecendo a estrutura precária, se tiver quebra de safra, esse milho importado vai chegar quando eu estiver plantando outra safra.”
Não é preciso ir longe para entender o que ele está dizendo. Em 2018, o país se viu em meio à greve dos caminhoneiros. “Fortuitamente, tínhamos, no Espírito Santo, 13 mil toneladas de milho armazenadas nos armazéns da Conab. E o Espírito Santo é o maior produtor de ovos e um dos maiores produtores de aves e suínos”, recorda. “O milho da Conab foi a salvação da lavoura. Se não houvesse, teria sido uma coisa dramática. Nem consigo imaginar o que teria acontecido. O que quero dizer com isso? O governo tem que ser um interventor de última instância. Quando tudo estiver desabando, tem que entrar.”
Se ocorrer de novo, a sorte pode não sorrir. Em queda livre, os dados de julho de 2019 mostram que temos em estoque apenas 660 mil toneladas de milho, 88% menos que em 2010.
Sem alternativas
Em um documento do começo deste ano, a Superintendência de Abastecimento Social se opõe ao fechamento de unidades. E recorda que a rede própria é fundamental para a população de baixa renda, tendo distribuído 2,3 milhões de cestas básicas entre 2015 e 2018. Até agosto de 2019, indígenas e quilombolas receberam 155 mil cestas básicas, um terço do que foi distribuído no ano passado, quando o programa já vinha em declínio. “A Conab, nesse sentido, é a primeira alternativa e, quiçá, a única, capaz de garantir capilaridade suficiente para assistência aos demais órgãos governamentais envolvidos”, adverte o documento.
O parecer recorda ainda que a existência de armazenagem privada, elemento central da argumentação pelo fechamento, não é garantia de nada. Nessas estruturas, segundo a superintendência, há maior risco de desvios e perdas de grãos, além de tratamentos com inseticidas sem o devido controle. Mais complicado, há a concorrência com as culturas rentáveis: um pequeno produtor não tem como competir por espaço com um latifundiário que produz soja. A falta de um lugar para estocar grãos o forçará a vender tudo de uma vez e no pico da safra, rebaixando preços.
Outro documento, produzido em novembro de 2018 pela Superintendência de Armazenagem, busca demonstrar que mesmo estoques estratégicos podem ser depositados em armazéns privados. Mas admite que há uma “limitação quantitativa” em certas áreas, em especial no Nordeste, ou seja, onde não há rede privada com capacidade de absorver a produção. E adverte que retirar alimentos de espaços privados, caso algo dê errado, pode ser demorado. A punição em caso de violação de regras é inútil: descredenciar um armazém privado deixa ainda mais grave o déficit de estocagem.
No Nordeste, o fechamento foi mais sutil. Porém não menos importante. A unidade João Câmara, no Rio Grande do Norte, movimentou 15 mil toneladas entre 2015 e 2018, num total de 4.700 agricultores. Agora, restarão duas unidades, em Natal, distante para pequenos produtores do interior. Entre Rios, na Bahia, movimentou 12,2 mil de toneladas no período. Estratégica para o Oeste baiano, Santa Maria da Vitória também entrou na faca. Em torno de 3.500 famílias eram beneficiadas com a distribuição de alimentos.
No Mato Grosso do Sul, Dourados é vista como uma das cidades mais afetadas. Alceu Júnior, secretário municipal de Agricultura Familiar, lembra que os programas públicos vêm perdendo fôlego nos últimos anos. “Já vinha a conta-gotas num processo informal de desativação e, agora, caminha para consolidar”, diz. “Uma situação dessas impacta toda a cadeia. A cadeia tem que se reinventar. O produtor, os insumos e a comercialização nas feiras livres deixa de fomentar. Porque querendo ou não, quem produz para atender o PAA não atende só isso. O PAA permite se capitalizar e produzir um pouco além disso para a comercialização local.”
No mesmo estado, Chapadão do Sul oferece uma fotografia do futuro de Dourados. Joeder Pereira de Paula, presidente do Sindicato da Agricultura Familiar local, recorda que a Conab chegou a ter duas estruturas na cidade. “O pagamento é muito mais fácil com a Conab. A gente tinha boas vantagens. E, com a atuação privada, isso muda. Os preços são maiores e as oportunidades são menores do que a gente tinha. Num todo, acabou prejudicando o pequeno produtor.”
Foto em destaque: Divulgação/Irga