Levantamento de O Joio e O Trigo revela predominância de mercados e congêneres em São Paulo, em um quadro de aumento da aquisição de itens não saudáveis
O misto é um sanduíche popular. Mesmo com variações, não existe quem não conheça a composição de duas fatias de pão, uma de queijo e outra de presunto. Quente ou frio, guarde bem a imagem dele na cabeça, porque, embora pareça inusitado, a receita desse lanche ajuda a entender um fenômeno que se passa em São Paulo e em outras metrópoles.
Trata-se da distribuição de estabelecimentos que vendem alimentos nestas cidades. Na capital paulista, predominam, em uma quantidade muito maior (54,45%), locais com uma disponibilidade mista de alimentos. Significa que, ao mesmo tempo, eles ofertam alimentos saudáveis e também não saudáveis.
Em outras palavras, os estabelecimentos de caráter misto disponibilizam tanto comida in natura e/ou minimamente processada, como verduras, grãos e frutas, quanto a ultraprocessada, como biscoitos, refeições congeladas, salsichas e outras guloseimas.
A constatação é do projeto São Paulo: onde falta e onde sobra comida saudável, de O Joio e O Trigo, que mostra em quatro mapas, elaborados com informações públicas, as características do ambiente alimentar da cidade. Trata-se de um levantamento que revela a divisão da oferta de alimentos saudáveis, não saudáveis e mista.
O método do projeto é o mesmo utilizado por outros estudos, como a tese do cientista Paulo César de Castro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estudou o ambiente alimentar na capital fluminense. A pesquisa dele inspirou e embasou o levantamento de onde falta e onde sobra.
Já falamos, anteriormente, que a falta de disponibilidade de comida in natura e minimamente processada caracteriza desertos alimentares, como é o caso do distrito do Grajaú. Também tratamos dos pântanos alimentares, concentrados nas regiões mais ricas da capital paulista, nos quais há oferta maior de ultraprocessados.
Em São Paulo, locais de oferta predominante de in natura e minimamente processados correspondem a 10,83% e aqueles com predominância de ultraprocessados a 36,72%.
A distribuição da oferta mista de alimentos (54,45% do total) é semelhante à de ultraprocessados e prevalece nas regiões mais ricas da cidade. Estabelecimentos de disponibilidade mista são, em geral, aqueles onde é possível comprar de salsichas a pés de alface.
Os supermercados são um exemplo deste caso. E não só disso, é claro, já que, em muitas lojas do gênero, é possível comprar de pneus de carro a fraldas descartáveis.
Recorde do lanche servido na abertura desta reportagem — pode ser do gosto ou da receita. Duas fatias de pão. Uma de queijo. Outra de presunto. Em geral, existem algumas variações, com tomate ou alface, mas a essência é a mesma: itens ultraprocessados ou processados com uma presença menor de alimentos in natura/minimamente processado.
Guarde bem a imagem do lanche misto ao visualizar os estabelecimentos de oferta mista.
Antes, tenha em mente que a definição da composição do sanduíche misto não vem de qualquer lugar. Corresponde ao que está previsto no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, que divide os alimentos em quatro grupos, conforme o tipo e o propósito do processamento.
São eles: 1. in natura e/ou minimamente processados, como tomates e alfaces; 2. ingredientes culinários, como sal, óleos e açúcar; 3. processados, como os pães francês, artesanal ou caseiro e alguns queijos; e 4. ultraprocessados, tais quais queijos industrializados e embutidos, como presunto, apresuntado, mortadela ou o que o valha.
O Guia deixa uma mensagem clara. Alimentos in natura e minimamente processados são saudáveis, enquanto os ultraprocessados não são, já que estão relacionados a males de saúde e a problemas ambientais.
Daí a comparação com o sanduíche misto —quente ou frio, tanto faz, nesse caso. Pense nele da mesma forma que pensa nos estabelecimentos de venda mista de alimentos. Em geral, há nesses locais uma presença maior do que não é saudável, apesar de o que é saudável também dar as caras, mais discretamente.
A diferença na oferta dos dois tipos de alimentos está presente, inclusive, na divisão dos espaços dentro dos locais.
O caso não é daqui, mas serve como parâmetro. Nos Estados Unidos, um grupo de pesquisadores comparou, em 2009, a oferta de alimentos saudáveis com a de não saudáveis no comércio do sul do estado da Louisiana e no condado de Los Angeles.
Em supermercados, segundo eles, a área destinada a frutas, legumes e verduras era, em absoluto, maior do que aquela em lojas de conveniência, drogarias e adegas. Mas, dentro dos supermercados, o espaço disponível a alimentos não saudáveis correspondia a quase o dobro daquele dedicado à comida saudável.
“Lojas de todos os tipos destinam mais espaço nas prateleiras para itens não saudáveis do que para itens saudáveis”, escreveram os autores de Measuring the Food Environment: Shelf Space of Fruits, Vegetables, and Snack Foods in Stores (Medindo o ambiente alimentar: o espaço nas prateleiras para frutas, vegetais e salgadinhos no comércio, em tradução livre).
Oferta e consumo
No Brasil, um indicador para entender o impacto da oferta de ultraprocessados é a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. A edição mais recente do levantamento (2017-2018) mostrou que estes itens correspondem a 18,4% do total de calorias adquiridos para consumo domiciliar de famílias.
Comparada com anos anteriores, a POF revelou que existe uma tendência de aumento da aquisição de ultraprocessados — 12,6% do total de calorias em 2002-2003. Também apontou para uma queda do consumo de alimentos in natura e minimamente processados, de 53,3% em 2002-2003 para 49,5% mais recentemente.
Além disso, nos últimos anos alimentos não saudáveis estão se tornando mais baratos e os saudáveis, mais caros. Já falamos aqui no Joio sobre uma pesquisa conduzida no Brasil que mostrou que, se a tendência de mudança de preços for mantida, biscoitos, salgadinhos e salsichas serão mais acessíveis do que hortaliças e carnes a partir de 2026.
Tanto no caso da POF quanto no dos preços, há relação com o aumento da venda de ultraprocessados. A maior disponibilidade desses produtos é um dos fatores que influencia o maior consumo, uma tendência em outras metrópoles brasileiras. Quer dizer, não é uma exclusividade de São Paulo.
Na sua pesquisa, Castro, da UFRJ, encontrou um padrão semelhante na cidade do Rio de Janeiro, com 8% de estabelecimentos de venda predominante de alimentos in natura e minimamente processados, 32% de ultraprocessados e 60% mista.
Em Belo Horizonte, a pesquisadora e nutricionista Olivia de Souza Honório mostrou, em dissertação de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que 46,92% dos estabelecimentos são de aquisição de ultraprocessados, 42,90% de mista e apenas 10,18% de in natura e/ou minimamente processados.
As três capitais brasileiras também têm em comum o fato de que a maior parte dos estabelecimentos está distribuída pelos bairros mais ricos. Apesar de as pesquisas sobre o trio de cidades não aferir o peso do comércio informal, esses indicadores deixam claro como a oferta de alimentos está ligada à desigualdade social.
Confira todas as reportagens publicadas na série:
- São Paulo: entre a abundância e a escassez no acesso à alimentação
- Deserto alimentar, Grajaú luta contra o coronavírus e a falta de políticas públicas
- Em pântanos alimentares, ultraprocessados ‘alagam’ bairros ricos de SP
- Oferta mista de alimentos é a maior em São Paulo e favorece os ultraprocessados
- Em São Paulo, mais dinheiro não é sinônimo de mais comida saudável
Os dados utilizados para o levantamento estão disponíveis aqui