Brasil contraria suas próprias diretrizes em documento que será apresentado em cúpula mundial das Nações Unidas; representantes da sociedade civil manifestam contrariedade
O processo demorou quatro anos. O resultado é o de sempre. Desde 2017, representantes de diversos países, do setor privado, das Nações Unidas e de organizações da sociedade civil vêm negociando um documento que tem por objetivo estabelecer orientações internacionais que balizem a elaboração de políticas públicas relacionadas com a produção e a distribuição de alimentos. O processo terminou, e o lobby venceu.
Em fevereiro, o grupo se reuniu para negociar a versão final das Diretrizes Voluntárias de Sistemas Alimentares e Nutrição no âmbito do Comitê de Segurança Alimentar (CSA), secretariado da Organização das Nações Unidas que foi criado em 1974 para acompanhar políticas públicas vinculadas à segurança alimentar.
O nome é longo, a discussão é complexa, mas o resumo da ópera é: mesmo sendo um documento que estabelece linhas gerais e voluntárias, ou seja, sem obrigação por parte dos Estados, foi alvo de um intenso lobby no qual as bandeiras dos governos se misturam às corporações do agronegócio e da alimentação. Também é um cartão de visitas das disputas que se abrem em torno da Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares.
Convocado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, o encontro será realizado em Nova York em setembro de 2021 para discutir linhas de ação para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. É um evento do porte da Eco-1992, realizada no Rio de Janeiro, e fundamental à época para explicitar a urgência e as tensões em torno da questão ambiental.
Já a Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares contará com representantes da área acadêmica e científica, de países que integram a ONU, do setor privado, de associações de consumidores, e de ambientalistas, povos indígenas e agricultores, entre outros.
Já o documento de adesão voluntária tem o propósito de criar diretrizes para “garantir que a alimentação necessária para uma nutrição adequada seja acessível, disponível, econômica, segura e de qualidade e quantidade adequadas em conformação com crenças, culturas e tradições, hábitos alimentares e preferências individuais de acordo com leis e obrigações nacionais e internacionais”.
Recomendações
Entre as sete áreas de ação estabelecidas pelo texto, estão temas como governança com prestação de contas, acesso justo e igualitário a dietas saudáveis, e igualdade de gênero em sistemas alimentares.
O material indica que as diretrizes sejam aplicadas de forma consistente com acordos internacionais “até o ponto em que sejam relevantes, aplicáveis e acordadas pelos respectivos Estados-membros”.
Também recomenda a participação efetiva de povos indígenas e comunidades locais, com ênfase em mulheres e grupos marginalizados, para “a governança de sistemas alimentares”.
O material refletiu o fim de um diálogo iniciado em 2017, quando o Comitê de Segurança Alimentar decidiu criar um grupo de trabalho para elaborar as diretrizes após a análise de um relatório do painel de especialistas do comitê. Sistemas agrícolas alternativos, doenças crônicas não transmissíveis, segurança alimentar, dietas saudáveis, direitos humanos, desigualdade social, mercados alimentícios e sustentabilidade foram alguns dos temas sobre a mesa.
Os resultados do processo, porém, deixaram os representantes da sociedade civil insatisfeitos. Para eles, os interesses do agronegócio exportador e das corporações transnacionais predominaram e calaram suas vozes.
“Não há solução sustentável se você mantém a matriz de de pobreza e de violação de direitos”, disse ao Joio Elisabetta Recine, representante do GT de Sistemas Alimentares e Nutrição do Mecanismo da Sociedade Civil (MSC). Ela é do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade de Brasília (UnB) e foi presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), fechado no primeiro dia do governo Jair Bolsonaro.
O MSC, que representa a sociedade civil no Comitê de Segurança Alimentar, procurou lutar por diretrizes que buscassem reformular os sistemas alimentares com base na defesa dos direitos humanos, da sustentabilidade, de modelos alternativos de agricultura como a agroecologia e na defesa de mercados locais.
Além de insatisfeito, o Mecanismo tem se mostrado preocupado com a possibilidade de que a Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares siga na mesma direção e represente apenas interesses privados.
Em carta ao presidente do Comitê de Segurança Alimentar, Thanawat Tiensin, assinada por diversas organizações, o Mecanismo reforçou críticas anteriores e fez uma série de demandas como condições para a participação na cúpula.
Entre elas, que o secretário-geral das Nações Unidas aceite um encontro com lideranças indígenas e de movimentos sociais e que esteja disposto a considerar se retirar do acordo de parceria estratégico realizado com o Fórum Econômico Mundial.
FAO em parceria com multinacionais
Outras preocupações da sociedade civil em relação ao futuro da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) foram expressas em carta enviada ao diretor-geral da entidade, Dongyu Qu, em 25 de fevereiro. A missiva critica os planos anunciados pela FAO, no final do ano passado, de fazer uma parceria com a CropLife International, organização do setor privado formada pelas maiores empresas do setor agroquímico e de sementes. Entre elas, multinacionais como Bayer, Basf e Monsanto.
De acordo com a carta, isso ameaça a “integridade, credibilidade, imparcialidade, independência e neutralidade” da organização ao abrir espaço para sua captura corporativa.
Contatada pelo Joio, a FAO enviou carta de Dongyu Qu de novembro de 2020 direcionada à sociedade civil em resposta a essas preocupações. No documento, o diretor-geral afirma que a organização leva muito a sério seu mandato para agir como um intermediário “neutro, honesto e independente”. E que parcerias com o setor privado são algo importante para “identificar e implementar abordagens inovadoras, para apoiar a agricultura sustentável e para, por fim, promover um engajamento e comportamento melhores”.
Ele também escreve que a aproximação com as multinacionais não cria nenhuma obrigação legal, financeira ou de outro tipo entre as organizações, e que não será uma parceria formal.
“Convergência” x “autoritarismo”
Mas o que foi vivenciado pelos representantes da sociedade civil no início deste ano gera – segundo contam – apreensão em relação a uma influência cada vez maior das corporações junto à FAO.
No entanto, o secretário do Comitê de Segurança, Chris Hegadorn, disse ao Joio que é “completamente impreciso” concluir que as negociações foram dominadas por qualquer grupo. “O Mecanismo da Sociedade Civil, o Mecanismo do Setor Privado e as outras partes interessadas estiveram engajados em todas as etapas do processo fornecendo recomendações e informação”, afirmou.
“Como todo produto do CSA, as diretrizes voluntárias refletem um processo de convergência política que inclui a visão de todas as partes envolvidas”, disse Hegadorn. “É importante reconhecer que todas as decisões no contexto do CSA são feitas com consenso entre seus membros.”
O Mecanismo da Sociedade Civil tem outra visão sobre o que aconteceu. Quando as negociações terminaram, a entidade se recusou a endossar o documento, obtido de forma “autoritária”. “A maioria ou mesmo todas as nossas questões prioritárias não se refletiram de forma significativa no documento final”, definiu Shalmali Guttal, da ONG Focus on the Global South – uma das integrantes do grupo –, em discurso ao comitê.
Ao longo da negociação, Brasil e Argentina se posicionaram de forma contundente a favor dos interesses do agronegócio, posição alinhada à de países como Estados Unidos e Rússia, no que envolveu a rejeição da inclusão de pontos que ressaltam a importância dos direitos humanos, de sistemas de agricultura alternativos como a agroecologia e que responsabilizam o agronegócio e a indústria alimentícia pelos efeitos danosos de suas práticas.
Lidar com essas questões implica reformulações dos sistemas alimentares que considerem todos os processos e elementos, desde os produtores de alimentos até os consumidores e os desfechos ambientais, sociais e de saúde.
A negociação surge em um contexto mundial de insegurança alimentar e do crescimento de afetados por doenças associadas ao consumo de alimentos ultraprocessados, de uma crise ecológica e climática e de ameaças aos direitos humanos, cenário que se agravou ainda mais durante a pandemia.
Segundo Recine, vários assuntos suscitaram intensas disputas. Ela afirma que há temas chamados de “linhas vermelhas”, pontos que alguns países como Rússia e Estados Unidos sempre procuram barrar. Alguns deles são direitos humanos, sustentabilidade e regulação de mercados.
Assim, conta a especialista, as sugestões da sociedade civil para que questões de direitos humanos fossem incluídas no documento foram frequentemente rechaçadas com afirmações de que não faziam parte do mandato do documento e do comitê.
Os EUA se opuseram a um trecho do documento que fazia referência à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outros Povos Trabalhando em Áreas Rurais (UNDROP). O Brasil endossou os Estados Unidos nessa decisão, assim como a Argentina.
A declaração visa garantir, entre outras coisas, que decisões políticas e ações por parte de corporações em áreas não urbanas que possam afetar populações locais sejam adotadas apenas após a consulta a essas comunidades, em um processo que respeite seus direitos e considere as diferenças de poder.
A adoção desse procedimento tornaria mais difícil, por exemplo, a atuação do agronegócio, que tem se expandido às custas de populações locais, muitas vezes destruindo os recursos naturais dos quais elas dependem para sobreviver ou mesmo as expulsando de forma violenta, como é comum no Brasil.
Outro de seus objetivos é garantir condições dignas e seguras de trabalho aos agricultores que atuam tanto na agricultura familiar quanto no agronegócio. A luta por condições dignas de trabalho inclui a demanda por melhores salários, o combate ao trabalho escravo e a redução do uso de pesticidas.
O documento é mencionado uma vez nas diretrizes, junto a outras declarações, acordos e sugestões das Nações Unidas e outras organizações internacionais, mas não há referência específica a ele quando se mencionam questões relacionadas a agricultores e nem se destaca sua importância. Também não são reconhecidos conflitos de interesse entre o agronegócio industrial e os direitos dos camponeses.
Água, agricultura familiar e alimentação saudável
Ao longo do documento, há diversos trechos que ressaltam a importância de uma melhor administração de recursos hídricos e do acesso à água, mas não se reconhece como a indústria alimentícia e o agronegócio exportador têm comprometido esses recursos. O texto recomenda que os governos devem implementar uma “regulação aperfeiçoada onde apropriado” para lidar com o manejo da água, mas não há determinações específicas.
Além do mais, não há menção ao acesso à água como direito humano. Recine afirma que houve oposição a essa inclusão e fala do interesse das corporações em comercializar o recurso: “É só ver a atuação das transnacionais na compra de fontes”.
A professora aponta que houve oposição também a destacar a importância dos mercados locais, muito associados à agricultura familiar e a outras fontes de alimento mais localizadas. Além de fortalecer pequenos produtores e comerciantes, os mercados locais têm se mostrado mais resilientes a diferentes crises do que os sistemas de distribuição em larga-escala associados ao agronegócio e as grandes redes de supermercados.
Definir o que é alimentação saudável e sustentável foi outra fonte de embates, segundo a professora da UnB. O setor privado procurou colocar o foco na composição nutricional dos alimentos, ou seja, bastaria cumprir certos requisitos nutricionais. Para a sociedade civil, no entanto, a compreensão de alimentação adequada está inserida em um contexto mais amplo que inclui o meio social, cultural, político e econômico – garantir uma alimentação adequada necessitaria reformas sociais profundas.
O Brasil se opôs a essa definição, o que contraria suas próprias leis: na edição de 1999 da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, já havia elementos de uma visão multidimensional sobre alimentação adequada. Uma definição explícita do que seria isso foi depois elaborada em 2006 na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.
A lei coloca estabelece alimentação adequada como um “direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal”, afirmando também que a adoção de políticas e ações para a sua garantia “deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais”.
Assim, com esse histórico, o posicionamento do Brasil durante as negociações é “estranho”, pondera a representante, já que o país tem um guia alimentar que adota uma definição de alimentação adequada e saudável muito mais próxima da que foi defendida pela sociedade civil no comitê. Mas as atuais defesas brasileiras ali, diz Recine, “são basicamente as do Ministério da Agricultura”. Ela continua: “Às vezes você não sabe se eles (o setor privado) estão alinhados com os países, ou se os países estão alinhados com eles, de tão harmônico.”
Alinhamento
A especialista recorda que as sugestões dadas pela sociedade civil foram resultado de discussões amplas no próprio GT como também das consultas regionais que fizeram parte do processo. Apesar disso, diz, o que foi debatido nessas consultas não se viu refletido no documento
Para Recine, parte do problema é o financiamento do comitê, da FAO e da ONU, dependentes cada vez mais de financiamento privado. Isso, segundo ela, permite que interesses privados exerçam influência nessas organizações de maneira progressiva.
Várias das insatisfações do Mecanismo da Sociedade Civil foram expressas em discursos ao comitê. Shalmali Guttal resumiu algumas: “A ausência de direitos humanos como pilar central da transformação de sistemas alimentares; nenhuma recomendação relacionada à redução de pesticidas e agroquímicos perigosos”. E continuou: “Falta de identificação clara do dano causado por marketing enganoso; financiamento não adequado de intervenções nutricionais”.