Tão triste quanto constatar que a insegurança alimentar cresce é perceber que pouco se discute as razões de o Brasil ter mergulhado nessa situação
A fome voltou. Ela não só está visível nas ruas, como cada vez mais surgem indicadores mostrando que essa chaga, em vias de ser superada anos atrás, retornou à centralidade dos problemas do país. Mais da metade da população brasileira sofre com algum grau de insegurança alimentar e pelo menos 15% convive com a falta diária e constante de ter o que comer. Os números constam do levantamento mais recente até o momento sobre o tema, no relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil”.
Não é sem razão, portanto, que o assunto voltou a pautar o noticiário, os discursos políticos e a atuação da sociedade civil. “Quem tem fome tem pressa”, dizia a célebre frase do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997). Mas, além das palavras dele, existe outro dizer no anedotário nacional que parece ter sido ignorado nos últimos tempos. “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo”, exprimia a máxima atribuída a Dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo emérito de Recife, que arrematava com uma provocação ímpar:
“Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”.
É igualmente triste constatar que, ao mesmo tempo em que a fome cresce, pouco se discute as razões de o país ter mergulhado nesta situação. Para quem não acompanha os indicadores de segurança alimentar e nutricional, a abordagem que tem sido reservada ao tema sugere que se trata de um problema conjuntural, ligado aos desdobramentos da pandemia do coronavírus. Essa, no entanto, é uma leitura reducionista. É claro que o tripé vírus-negacionismo-desemprego tem a sua parcela de culpa. Mas não é o único fator responsável pela situação nem é, certamente, o central.
“A pandemia deixou óbvio qual é o projeto de país que se tem e que se implementa de uma maneira muito eficiente”, observou a ex-presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, também professora e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da UnB. “Essa fome, no final, é produto de um momento agudo, que é expressão de uma situação crônica nesse país”, ela complementou, durante o evento de divulgação do relatório sobre a fome, tocando num ponto nevrálgico para discutir o que é e de onde vem essa chaga.
A fome é produto de um momento agudo, que é expressão de uma situação crônica no país
— Elisabetta Recine, ex-presidenta do Consea
Em 2018, O Joio e O Trigo foi o primeiro veículo de jornalismo a soar o alerta nacionalmente. O presidente da República eleito naquele ano deveria ter as políticas de segurança alimentar e nutricional como prioridade na agenda de governo. Fome e pobreza andam juntas. À época, quase 25% da população, cerca de 50 milhões de pessoas, vivia em situação de pobreza, e cerca de metade disso, 12,5% do total de brasileiros, na extrema pobreza. Isso significa que um quarto das pessoas no país sobreviviam com R$ 387,07 mensais, quando pobres, e com R$ 133,72 por mês (valores da época), quando extremamente pobres.
Três anos atrás, não custa reforçar, já havia um enorme contingente de brasileiros tendo que contar os centavos no dia a dia para decidir entre pagar as contas ou comer. Não à toa, a Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) de 2017-2018, do IBGE, mediu com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) que 36,7% dos lares brasileiros —totalizando 84,9 milhões de pessoas— sofriam alguma dificuldade para a aquisição de comida. Segundo o estudo, pelo menos 10,3 milhões de pessoas enfrentavam, à época, a fome como rotina, com uma falta constante e diária de alimentos.
Naquele momento, as autoridades do país, sob a batuta do então presidente Michel Temer (2016-2018), creditavam o problema ao desemprego e esperavam que duas das principais iniciativas do governo viriam solucionar a questão. De um lado, a reforma trabalhista; e, de outro, a promulgação da Emenda Constitucional 95, que limitava por 20 anos os investimentos sociais do governo federal.
Prometia-se que a primeira ajudaria na geração de postos de trabalho, e a segunda atrairia investimentos, aquecendo a economia. Os números mostram. E, se você viveu no Brasil durante esse tempo, também sabe dizer. Nem uma coisa nem outra aconteceram.
O que deu sequência ao projeto da Ponte para o Futuro, idealizado por Temer, foi a eleição de Jair Bolsonaro. Enquanto o país vivia uma crise social, o então candidato se ausentava dos debates eleitorais para fazer comícios dizendo que “iria metralhar a petralhada”. Ao assumir o poder, ele não só ignorou o aumento da fome, como desarticulou tudo aquilo, dentre programas sociais e estruturas de governo, que serviriam para revertê-lo. Desde então, denunciamos uma a uma a destruição de uma série de políticas fundamentais para evitar um retrocesso na garantia da alimentação e nutrição adequadas:
- Extinção do Consea;
- Desidratação do Programa de Aquisição de Alimentos;
- Destruição do Programa de Cisternas;
- Demissão de servidores da área de Segurança Alimentar e Nutricional;
- Desativação dos estoques estratégicos de arroz;
- Paralisação da reforma agrária;
- Descontinuidade do programa de renda básica emergencial;
- Descontrole da inflação dos alimentos;
Insistimos em lembrar da existência dessas políticas não porque o disco riscou, mas porque tais programas são importantes para dar resiliência. Isso é, eles mantêm uma estrutura tal de segurança alimentar e nutricional que torna o país mais resistente às crises econômicas — e pode-se incluir aí também as crises sanitárias, sociais e políticas. Com um programa de aquisição de alimentos eficiente, por exemplo, garante-se ao mesmo tempo tanto que um agricultor mantenha a produção, evitando a variação de preços, quanto que alguém passando por necessidade financeira tenha acesso à alimentação.
Ao abordar os relatos dramáticos daqueles que estão sofrendo com a fome, é fundamental entender o que se fez ou deixou de ser feito para que isso aconteça. Divulgar, apoiar e incentivar as ações da sociedade civil contra tal situação ajudam a mitigar alguns dos efeitos, mas não se pode perder de vista que o Brasil enfrenta hoje um problema eminentemente político — de opções de orçamento, de definição de prioridades, de desenho de agenda, de formação de alianças, de projeto para o futuro.
Não basta somente sensibilizar acerca de doações que até podem ajudar a abafar a fumaça, mas jamais apagarão o incêndio. Não basta esperar a boa vontade daqueles que irão se sensibilizar. “Chocar é o método dos incompetentes”, diz outra célebre frase do anedotário nacional. Se o Brasil quer virar a página da fome, há muito mais para construir, muito mais para fazer, muito mais, sobretudo, para investigar e tornar público.