Mito do “paladar infantil” coloca nuggets e batata sorriso em primeiro plano, e frutas, legumes e verduras de escanteio, mesmo em restaurantes renomados e inovadores
Se você tem filhos ou costuma folhear os cardápios de restaurantes, já deve ter se deparado com um menu infantil. A grande maioria das opções disponíveis são nuggets, arroz, batata sorriso e macarrão ao sugo ou na manteiga. Frutas, legumes e verduras são presença rara. Trata-se de gostos neutros, com pouquíssimo tempero, que exigem pouca mastigação. Será que é só isso que agrada as crianças?
Mesmo as casas renomadas, comandadas por chefs premiados ou que oferecem pratos mais inovadores, não se arriscam, e as receitas são limitadas, com pouca complexidade de sabor. No Dalva e Dito, que tem uma carta idealizada por Alex Atala, os pequenos podem escolher, por R$39, entre bife ou frango, acompanhado de espaguete na manteiga ou ao sugo, ou arroz com feijão, além de fruta ou sorvete.
Já no Restaurante Nou, que possui três unidades em São Paulo, o menu kids custa R$37. A composição é de uma carne (de vaca, frango ou peixe), combinada com arroz branco, batata frita, purê ou massa (ao sugo ou na manteiga). O chef Amilcar Azevedo, que comanda o local, justifica que a escolha se deve ao que agrada o maior número de crianças e idades variadas. “Os ingredientes são mais simples, mais palatáveis, e menos temperados”, conta.
Existe um senso comum velado de que essas deveriam ser as opções disponíveis nos estabelecimentos para impedir birras e estragar a experiência dos pais ou de outros clientes.
O chef-proprietário do Restaurante Nou confirma que os feedbacks que recebe por seu cardápio infantil são positivos por se tratar de preparos bem servidos para aquele público, saborosos e com um preço atrativo.
Entretanto, em comparação com o guia alimentar elaborado por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, que ilustra a forma mais adequada de se fazer uma refeição saudável, e o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, os pratos voltados para crianças passam longe das recomendações, porque falta diversidade no aporte de nutrientes, principalmente com os legumes. E, por vezes, aparecem ultraprocessados, como nuggets, que deveriam ser evitados.
A alimentação de crianças é um tema de crescente preocupação na comunidade de saúde do mundo inteiro. O estímulo ao consumo de ultraprocessados e de fast-food tem sido acompanhado por um aumento nos índices de sobrepeso e de enfermidades crônicas. A proporção de brasileiros de cinco a nove anos com obesidade em 2019 foi de 13,2%, segundo o Atlas da Obesidade Infantil no Brasil, do Ministério da Saúde.
As consequências disso podem ser diabetes, doenças autoimunes e cardiovasculares, deficiências imunológicas, entre outras.
O site Maternidade Sem Neura fez um levantamento em 2016 com pais e mães de meninos e meninas de até dez anos sobre “restaurante e alimentação infantil”. Em 87,9% dos 74 pratos analisados, de 46 estabelecimentos, somente um ou dois grupos alimentares estavam representados: basicamente carboidratos e alguma carne, in natura ou processada.
O problema não é exclusividade do Brasil e se repete em diversos países, como Espanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália. O caso dos EUA é ainda pior. Em 2013, o Centro de Ciências de Interesse Público (CSPI) avaliou o valor nutricional de 3.494 combinações disponíveis nas 41 principais redes que possuem menu infantil e descobriu que mais de 90% das refeições não atendiam aos padrões nutricionais. As ofertas mais comuns incluíam frango frito empanado, batata frita e refrigerante.
Visão dos pais
Das 318 pessoas que responderam à pesquisa do Maternidade Sem Neura, apenas 5,7% optavam sempre pelo cardápio para crianças. Sobre os motivos da rejeição, 58,1% consideravam que as opções eram pouco saudáveis. Outros motivos seriam que ele não possuía itens que estavam presentes na rotina dos pequenos ou teriam um preço incompatível.
Realmente, para os locais é bastante vantajoso cobrar cerca de R$30 por meia porção de macarrão com manteiga e ultraprocessados baratos.
Ainda assim, 53,8% dos entrevistados eram a favor da existência desses menus, principalmente devido às quantidades, algo que também é interessante para evitar o desperdício alimentar.
Patricia Smith, nutricionista e mãe do Adam, de 11 anos, enfrentou dificuldades para encontrar estabelecimentos que pensassem no bem-estar de seu filho. A solução quando saía era passar parte de seu prato e do marido para o menino, além de adquirir um acompanhamento. Esse momento passou quando ele atingiu os nove anos e começou a finalizar as próprias refeições.
“Como os restaurantes não quiseram comprar a briga de transformar as crianças em indivíduos que apreciam a boa comida, a gente precisa se adaptar. Se sempre aceitarmos o menu infantil, sempre vamos oferecer mais do mesmo”, reflete.
A ida aos restaurantes representa uma atividade frequente entre os brasileiros, que compromete 13% do orçamento familiar, segundo o levantamento de 2021 do Instituto Food Service Brasil (IFB)/Crest. E essa experiência, muitas vezes, não é nutritiva nem para os adultos, porque a ideia é, via de regra, justamente fugir da rotina e se empanturrar. A diferença para os pequenos é que as opções são infinitamente mais restritas e experimentar novos ingredientes e sabores não faz parte do processo.
Patricia defende que os restaurantes não são necessariamente os vilões dessa história, só que poderiam fazer mais. “É uma pena que eles não entendam que também podem ser um veículo de educação, não só de desejo ou para matar a fome”, lamenta. “Qual é a dificuldade de [preparar] um carbonara para uma criança? Basta ter boa vontade para fazer um posicionamento, ajustar a quantidade e pensar na precificação.”
Nesse sentido, não seria preciso pensar em soluções mirabolantes. Uma alternativa é ajustar os temperos mais fortes e as quantidades do próprio cardápio regular, mantendo, assim, a identidade do local.
Paladar infantil
A autora e professora de Saúde Pública Alison Ventura teoriza em seus estudos (“Early influences on the development of food preferences”) que os seres humanos nascem com aversão ao amargo e ao azedo, e isso seria uma proteção primitiva contra alimentos venenosos ou tóxicos. No entanto, a interpretação poderia ser moldada e influenciada pelo ambiente.
Pesquisas indicam que a exposição precoce e contínua a novos sabores é uma das estratégias que ajuda a desenvolver as percepções e os sentidos, acarretando em comedores mais aventureiros. Por outro lado, a ideia de um paladar infantil e da existência de uma comida específica para essa faixa etária surgiu com a indústria dos ultraprocessados, que se baseia em produtos que você não quer parar de comer. “As crianças costumam preferir pães e biscoitos do que frutas porque numa mesma cesta de morangos, cada um vai proporcionar uma experiência diferente: um mais maduro, mais azedo, mais doce. Enquanto o biscoito vai ter sempre o mesmo gosto. Essa previsibilidade pode ser interessante [em certo momento da vida], mas, para o cérebro não se acostumar e para receber novas informações, é preciso oferecer variedade e preparações diversas”, explica Patricia Smith.
Tentativa de mudanças
Houve uma iniciativa para transformar o menu infantil saudável numa obrigação. Em 2021, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou o Projeto de Lei nº 957/2018, de autoria da vereadora Teresa Bergher, que previa que bares e restaurantes da cidade fossem forçados a oferecer pratos nutritivos, variados e seguros para os pequenos. Porém, a medida foi vetada pelo prefeito Eduardo Paes, devido a uma pressão do setor.
A justificativa oficial estabelece que “a proposição em pauta significa grave intromissão do Poder Legislativo Municipal em seara que não lhe é própria, pois pressupõe uma intervenção do Poder Público no domínio econômico, considerando que as medidas visadas implicarão em aumento de gastos das pessoas jurídicas atingidas”.
A vereadora conta que a proposta tinha duas frentes: a precificação e a saudabilidade. Com isso, ficaria garantido que os pais não fossem obrigados a pagar por uma refeição de adulto quando seu filho come pouco e que houvesse outras opções. “[A intenção não era] proibir a criança de comer hambúrguer e batata frita, mas que os cardápios incluíssem verduras e legumes”, defende.
Contudo, a lei não é precisa em definir quais refeições exatamente deveriam ser ofertadas nem o que seria uma alimentação saudável. Sobre esse ponto, Teresa confirma que pretende reapresentar a determinação, a partir do próximo ano, de uma maneira mais bem elaborada e aprofundada.
A mãe do Adam opina sobre a rejeição da diretriz: “Tem a questão de que eu quero poder escolher aquilo que eu vou dar para o meu filho, não que o governo diga isso para mim. Por que não fazer antes uma maior taxação de refrigerantes e ultraprocessados? Não precisa atacar o consumidor e os restaurantes menores. A gente sentiria isso como uma punição, não como parte de um movimento maior.”
Uma atitude mais adequada seria a utilização de selos pelos estabelecimentos para sinalizar que ali as crianças seriam bem recebidas, onde poderiam “ter uma experiência gourmet”, além de proporcionar uma padronização dos cardápios para esse público, com quantidade e precificação bem definidas.
Patricia idealizou um projeto para adaptar os cinco pratos mais pedidos de cada casa, e tentou implementá-lo por volta de 2015. “Mesmo os restaurantes que realmente são acolhedores acharam que [o selo] ia afastar os clientes que iam sem filhos, porque [existe o consenso de que] criança incomoda. Era algo que precisava de vontade para acontecer”, pondera.
A falta de opções diversificadas, saudáveis, divertidas, criativas, atrativas e que incentivam a curiosidade é regra. No entanto, o Animus segue um caminho contrário em seu menu infantil, que é uma exceção absoluta por fornecer comidas um pouco mais elaboradas. Ele é composto por salada de tomates ou chips de batatas, com picadinho de carne bovina, frango empanado ou legumes grelhados, com arroz ou massa.
A chef que comanda a empresa, Giovanna Grossi, conta que os pequenos sempre podem compartilhar os pedidos dos adultos, mas existe uma carta que visa abarcar todos os gostos, inclusive de veganos. “A ideia é facilitar a vida dos pais na hora de pedir, caso as crianças tenham algumas restrições, e também para elas sentirem o poder da escolha dos pratos”, justifica.
Já o padrão internacional do Jamie’s Italian, apesar de proporcionar pizza, hambúrguer e salmão, entre muitos cardápios analisados, é o único onde há saladas completas e vegetais, ao disponibilizar, por exemplo, wrap de frango grelhado com verduras. No Brasil, está havendo uma reformulação. Porém, o acompanhamento de alface com tomate, cenoura e molho de iogurte é garantido a todos os meninos e meninas e não há frituras.
Os estabelecimentos que promovem um olhar diferenciado aos clientes mirins oferecem descobertas e ampliam o repertório gastronômico, por meio de alimentos, combinações e temperos que normalmente não fazem parte do consumo diário dos pequenos.
Em relação aos lugares que não são tão acolhedores e não conquistam logo de cara, Patricia recomenda que os pais tomem a iniciativa de ligar antes e negociar como gostariam que os pratos fossem elaborados, para não pegar os funcionários de surpresa ou ter problemas durante o serviço. Assim, a receptividade é maior, vai se criando uma relação com os restaurantes e os conscientizando aos poucos.
Ser receptivo a crianças implica em querer seu bem-estar. Apartá-las e não permitir que sejam parte da experiência não é uma atitude receptiva.