Redução de menos de 2% e exclusão de principais produtos do mercado reforçam necessidade de ação do Estado para lidar com obesidade e doenças crônicas
Algumas das principais categorias de alimentos industrializados ficaram de fora do acordo de redução do uso de açúcar assinado no final de novembro entre o Ministério da Saúde e as maiores fabricantes. Balas, chocolates, sorvetes, refrescos em pó, gelatinas, barrinhas de cereal, geleias e cereais matinais não foram incluídos.
Muitos dos produtos líderes de vendas também escaparam do esforço de reformulação porque já cumprem com as metas pactuadas entre o poder público e as associações que representam o setor privado. A previsão é de retirar 144 mil toneladas desses produtos até 2022, o que corresponde a uma redução de cerca de 1,5% do açúcar usado em itens industrializados.
Preparamos uma relação de categorias e produtos que escaparam do acordo, que tem caráter voluntário e não prevê punição em caso de descumprimento das metas. Para saber os líderes de vendas, consultamos o ranking elaborado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras).
Em alguns casos, não é possível saber a quantidade de açúcar dos itens mais comercializados porque as empresas não são obrigadas a fazer essa declaração. O termo de compromisso firmado mês passado em Brasília não prevê nenhuma mudança nesse sentido, dificultando o acompanhamento das metas pela sociedade.
“O raciocínio é simples: se fosse um acordo forte, a indústria não aceitaria. Ela lutaria contra, como está lutando contra as medidas regulatórias que vêm sendo adotadas no mundo todo para lidar com a questão da obesidade”, define Mélissa Mialon, pesquisadora de práticas corporativas e integrante do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens).
O acordo não menciona produtos açucarados como chocolates, sorvetes, sucos em pó, gelatinas, barrinhas de cereal e cereais matinais, além de outros.
Veja alguns produtos que ficaram de fora
Nescau: O achocolatado mais consumido do país tem 75% de açúcar, frente uma meta de 85% para 2022.
Danoninho: líder na categoria petit suisse, tem 12,25%, contra uma meta de 13,9% para 2022. O segundo mais vendido, Chambinho, tem 14%.
Trakinas: líder em biscoitos recheados, leva 36,3%, apenas 0,1% abaixo da meta de 36,4%.
Wafer Amandita: segundo na categoria wafers, tem 39,6%, contra uma meta de 46,6%.
Toddynho: líder em leite achocolatado, leva 12% de açúcar, contra uma meta de 12,9%.
Indústria “em festa”
Durante o lançamento da iniciativa, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), Wilson Mello, afirmou que o setor estava em “festa”. “Como indústria não antecipamos nenhum tipo de impacto negativo. Até porque esse acordo endereça uma preocupação do consumidor.”
De outro lado, a Abia chegou a prever uma perda de R$ 100 bilhões com a adoção de alertas nos rótulos para o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. A medida é estudada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e já foi adotada, com variações, no Chile, no Uruguai, no Peru, no Canadá e em Israel.
Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é cética quanto à possibilidade de sucesso do acordo de redução do açúcar. “A questão é que de fato a gente precisa de estratégias combinadas. Se a gente olha para só um pedaço, a solução não é efetiva. A reformulação poderia compor uma estratégia mais ampla, de regulação de marketing, regulação de preços e rotulagem.”
No final da década passada, quando a Anvisa avaliava restringir a publicidade de alimentos não saudáveis, a Abia também lançou mão de um acordo voluntário com o Ministério da Saúde. Onze anos depois, a entidade informa ter havido uma redução de 17 mil toneladas no uso de sódio. Trata-se de uma diminuição diária de 0,02 grama por pessoa, frente a um consumo de doze gramas.
“Acordos voluntários sempre servem para pouca coisa. A história do sódio mostra isso. O Brasil fazer ou não fazer o acordo sobre o açúcar tem um efeito praticamente inócuo”, continua Daniela Canella. Em 2006, o Vigitel, um inquérito telefônico atualizado anualmente pelo Ministério da Saúde, acusava 22,6% dos brasileiros com hipertensão, um dos principais problemas de saúde associados ao consumo excessivo de sal. Em 2017, o índice havia passado a 24,3%.
“Nos anos 1990 esse tipo de acordo poderia ser visto pelos governos como algo bom. Mas agora estamos em 2018 e há inúmeros exemplos mostrando que essas iniciativas não funcionam”, diz Mélissa Mialon.
“Uma das preocupações é que a indústria está trabalhando com o governo, o que acaba funcionando como um endosso do poder público. Esse acordo é totalmente contraditório ao Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda evitar esses produtos. Ou seja, manda-se a mensagem errada para a população”, conclui a pesquisadora.
(Uma outra versão desta mesma reportagem foi publicada em parceria com o portal UOL.)