Mistério na eleição de uma tradicional sociedade científica do Brasil

Processo eleitoral na Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos é negligenciado   

Ainda tem eleição em 2018, ao menos na área de tecnologia de alimentos. Ou deveria ter. Ocorre que a mais antiga entidade do segmento no Brasil, a cinquentenária Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (SBCTA), apesar da idade, não toma juízo. Em 28 de setembro, um discreto comunicado no site da associação  informava que o processo eleitoral que escolheria a nova diretoria para o biênio 2019-2020 seria realizado no dia 12 de dezembro deste ano, data, obviamente, que já se foi. E nada de votação.

Depois de dias de insistência – por telefone e e-mail -, buscando saber quantos grupos se inscreveram na disputa, a secretaria da SBCTA, sediada em Campinas (SP), finalmente nos atendeu, quando já adentrava a primeira semana de dezembro. A voz do outro lado da linha,  surpreendentemente, soltou: “Não há inscritos para a eleição”.

Não haverá votos, porque não há candidatos. Simplesmente, nenhuma chapa se apresentou para o pleito. “Nunca aconteceu. É a única vez na história da SBCTA”, prosseguiu o atendente, que não conseguiu explicar os motivos da inusitada situação.

Pudera. Difícil, mesmo, entender porque uma sociedade científica que ostenta entre os parceiros e associados nomes de peso como Nestlé, Yakult, Piraquê, Nutrimental, Facebook, USP e por aí afora, não desperta o interesse de viva alma para concorrer à direção.

Evidentemente, a comissão eleitoral poderia gritar mais alto. Propagar a mensagem de convocação por múltiplos canais, informar mais e melhor. E, talvez, até prorrogar o prazo para que possíveis pretendentes aos cargos eletivos fizessem a inscrição.

No entanto, em uma pesquisa feita nas postagens do Facebook da entidade, verificando o período de 1º agosto a 18 de dezembro (lembremos que a rede social do Zuckerberg é apresentada como parceira pela própria SBCTA), a convocatória eleitoral não recebe  nenhuma menção.

Em contraponto, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), representante-mor das megaempresas alimentares, tem eventos bastante divulgados, caso do 11º Congresso Internacional de Food Service, realizado em outubro e patrocinado por Coca-Cola, Nestlé, Mars, Bunge, Cargill e tantas outras corporações, sem restrição.

Algumas empresas, como a Coca, ganham até propaganda dos mais novos e “saudáveis” lançamentos, a exemplo do Yas, bebida que carrega o slogan de ser “100% natural” e é destacada na rede da SBCTA como se fosse solução.

O Yas, da Coca, é destaque na página da SBCTA no Facebook, já a eleição…

Congressos e simpósios que acontecerão só em 2019 são recorrentes no Face da sociedade: maior destaque, muito repetido, brilha o I Simpósio Internacional de Cacau e Chocolate, a se realizar no próximo mês de maio, em Ilhéus, na Bahia, tendo a SBCTA na organização

Inclusive, a atual presidente da entidade, Suzana Lannes, será palestrante no evento. E Glaucia Pastore, ex-presidente e hoje conselheira da SBCTA, ocupa, nada menos, do que a presidência da comissão científica do simpósio, um posto de alto escalão.

Suzana é professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) e Glaucia leciona na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de ser coordenadora da ciência de alimentos da Capes. Ambas já se envolveram em polêmicas no que se refere a patrocínios de congressos científicos que comandaram, como a reportagem do Joio revelou em primeira mão.

Por falar em Unicamp e USP, uma nota publicada no site da SBCTA no último dia 3 de dezembro causou ainda mais estranheza. Em poucas linhas, o texto avisa que “imprevistos” fizeram com que a assembleia geral ordinária que ocorreria no dia 12 visando à eleição foi transferida para este dia 19, às 10h, no Butantã, num dos prédios da Universidade de São Paulo. Há dúvidas sobre a motivação dessa mudança, já que a sede da sociedade fica em Campinas e, tradicionalmente, é a Unicamp que recebe a eleição.

Além disso, as dificuldades de participação não se restringem só a alteração de endereço. Existem outros obstáculos. Os associados ou terão que se deslocar ao Butantã, ou entrar por videoconferência. Seria democrático, se o acesso ao sistema não exigisse que cada interessado em acompanhar o evento deva estar de frente para um equipamento com especificidades técnicas incomuns e percorrer um arrastado caminho virtual, encarando antes ajustes com o mínimo de 40 minutos de duração.

O resultado da assembleia, na ausência de chapas, é uma incógnita. O  grupo de lideranças situacionistas, que acumula dois mandatos seguidos com Suzana Lannes na presidência e já teve Glaucia Pastore à frente em outros biênios deste século, está com a faca e o queijo nas mãos para manobrar politicamente e se  estender no poder, na ausência de oposição.

E, se nem a democracia interna de uma sociedade de tecnologia de alimentos com mais de cinquenta anos de trajetória funciona, como podemos esperar que os principais agentes que a compõem tenham legitimidade para seguir interferindo em políticas públicas alimentares em nome da Nação?

Foto em destaque: Pixabay

Leia mais: 

Confusões políticas (e alimentares) de uma sociedade científica cinquentenária

 

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