Pesquisa da França constata que aumento de 10% no consumo de ultraprocessados eleva em 14% a chance de morte por qualquer causa
Um estudo científico associa pela primeira vez a comida-porcaria a um maior risco de morte. Epidemiologistas da Universidade Paris 13 acabam de publicar os dados no Journal of American Medical Association, o JAMA. Ao analisar 44.551 adultos franceses acompanhados entre 2009 e 2017, os cientistas descobriram que um consumo 10% maior de ultraprocessados aumenta em 14% o risco de morte.
Já havia evidências associando ultraprocessados a um maior risco de obesidade, hipertensão e câncer. Esses produtos costumam ter altos teores de sal, açúcar e gorduras, e um baixo índice de fibras. De certo modo, a lógica indicava uma chance maior de morte.
Mas, agora, tem-se uma associação direta e estabelecida entre mortalidade e produtos que estão cada vez mais no alvo de pesquisadores de saúde pública mundo afora. Durante o período de acompanhamento desse estudo, 602 pessoas com mais de 45 anos morreram – a ideia central foi acompanhar o risco de mortalidade para pessoas de meia idade. Entre elas houve 219 casos de câncer e 34 de doenças vasculares.
Ao analisar a dieta relatada pelas próprias pessoas ao longo desses anos, os pesquisadores as dividiram em grupos de acordo com o consumo de alimentos in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados.
Essa divisão, chamada de classificação NOVA, foi criada em 2009 pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP. Desde então, pesquisadores vêm tentando entender se esses produtos estão ou não associados a desfechos negativos.
“Com o tabaco se deu o mesmo”, avalia Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e criador da classificação NOVA. “Quando você faz a revisão das evidências científicas, vários estudos em vários lugares encontraram a mesma coisa. A totalidade das evidências é muito importante.”
O novo estudo coloca um elemento importante para a discussão. E enfraquece ainda mais a tese da indústria de que não existem alimentos bons ou ruins. Esse discurso é frequentemente evocado para alegar que não faz sentido criar regulação pelo poder público, uma vez que a dieta seria meramente uma questão de boas ou más escolhas.
Para piorar, a pesquisa estabelece claramente uma desigualdade alimentar: pessoas com renda mais baixa, menor escolaridade e menor nível de atividade física têm um maior consumo de ultraprocessados (essas diferenças foram levadas em conta na hora da análise, ou seja, o efeito sobre a mortalidade do consumo de alimentos ultraprocessados existe independente dessas diferenças).
Há uma série de hipóteses para explicar por que produtos como refrigerantes, salgadinhos, biscoitos, achocolatados e macarrões instantâneos podem levar a esse desfecho. Há evidências suficientes para dizer que o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas leva a problemas de saúde. Sabe-se também que uma menor quantidade de fibras é prejudicial, e esses produtos têm baixos índices de fibras.
Para que se tenha uma ideia, enquanto os ultraprocessados representaram 14,1% do peso consumido em alimentos, responderam por 29,1% da energia. Ou seja, são produtos com altos índices calóricos, o que é fator fundamental para levar a obesidade.
Os pesquisadores consideram importante ainda ressaltar que, embora não se conheça profundamente os efeitos de aditivos sobre a saúde, as evidências existentes permitem defender a necessidade de mais estudos. Até mesmo os danos provocados pelas embalagens utilizadas nesses produtos precisam ser analisados, porque começam a se revelar.
“No caso dos ultraprocessados, os mecanismos estão cada vez melhor estabelecidos. Todos os caminhos levam à explicação do aumento da mortalidade”, analisa Carlos Monteiro.
A situação pode ser ainda pior. Os pesquisadores recordam que o estudo em questão é de adesão voluntária e, portanto, atrai pessoas que já têm algum interesse em cuidar da saúde. Prova disso é que o consumo de ultraprocessados entre essas pessoas é mais baixo que a média da população. A prevalência de tabagismo também é menor. Ou seja, na vida real esse percentual pode ser ainda mais elevado.
Além disso, a França não está entre os países com os mais altos índices de consumo desses produtos. É possível que no Reino Unido e nos Estados Unidos a situação seja mais dramática em termos proporcionais.
No Brasil, os dados disponíveis são da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE de 2008-09, e indicam uma ingestão média mais baixa do que nesses dois países, mas não temos um retrato fiel da situação atual por aqui.
Em breve, o Nupens iniciará o cadastramento de pessoas para um estudo de coorte nos formatos do NutriNet Santé. A ideia é acompanhar um grupo populacional grande durante muitos anos para extrair daí uma série de informações relevantes sobre dieta e saúde.
Muita calma nessa hora
Ao mesmo tempo, é preciso ter cautela com a análise dos resultados de uma única pesquisa. O novo artigo é um passo importante, mas não é o ponto final da história. Os resultados indicam correlação: ou seja, não há uma ligação direta já estabelecida entre esses produtos e a morte.
Estabelecer a causalidade é um passo quase impossível. Quando se fala de alimentação, tudo é muito complexo. As pessoas comem dezenas de coisas diferentes ao dia, e raramente repetem todos os dias a mesma dieta. Seria preciso fazer um estudo num ambiente totalmente controlado, com milhares de pessoas, durante um período longo. Ou seja, é inviável financeira e eticamente.
De todo modo, o conjunto de evidências revelados nos últimos anos, e que deve crescer ao longo de 2019, só faz reforçar a mensagem-chave do Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014: evite ultraprocessados.