Novos estudos associam alimentos ultraprocessados a morte e doenças cardiovasculares

Artigos publicados em simultâneo reforçam conjunto de evidências científicas que conectam consumo de salgadinhos, biscoitos e refrigerantes a problemas graves de saúde

Dois novos estudos associam o consumo de alimentos ultraprocessados a um maior risco de doenças cardiovasculares e morte. Os artigos, publicados em simultâneo na quarta-feira (29) pelo BMJ, o antigo British Medical Journal, somam-se a um conjunto de evidências científicas que tem reforçado a necessidade de limitar ou evitar biscoitos, salgadinhos, refrigerantes e afins.

Nos dois casos, trata-se de estudos de coorte, ou seja, de pesquisas com amostras populacionais grandes acompanhadas por um período longo.

Nas últimas décadas, os índices de obesidade explodiram em todo o mundo, acompanhados pelo aumento nos casos de doenças crônicas (diabetes, hipertensão, câncer). No Brasil, o Ministério da Saúde estima que três em cada quatro mortes estejam associadas a essas enfermidades, causadas também por outros fatores, como tabagismo, álcool e inatividade física.

O primeiro dos dois novos artigos analisa a coorte de Navarra, na Espanha, que acompanha quase vinte mil pessoas há duas décadas. Os pesquisadores reuniram os dados acumulados entre 1999 e 2014 para dividir os participantes em quatro quartos de acordo com a quantidade de consumo de ultraprocessados.

Nesse período foram registradas 335 mortes – 164 por câncer. A principal descoberta é de que os participantes com o maior consumo de ultraprocessados tiveram risco de morte 62% maior que os de menor consumo. Cada porção extra diária desses produtos aumentou em 18% a chance de morte.

O outro estudo é realizado na França desde 2009. A amostra populacional do NutriNet Santé é maior, de 105 mil pessoas. O que os pesquisadores fizeram foi aplicar questionários, repetidos periodicamente, usando 3.300 itens alimentícios divididos de acordo com a classificação NOVA, que separa os alimentos de acordo com o grau e o propósito do processamento.

O brasileiro Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e criador da classificação, participou diretamente da análise dos dados.

No geral, descobriu-se que o quarto de participantes com o maior consumo de ultraprocessados teve uma chance maior de desenvolver doenças cardiovasculares. Um aumento de 10% nesse consumo foi associado a uma elevação de 12% na incidência de problemas cardiovasculares em geral, 13% de doenças coronarianas e 11% de doenças cerebrovasculares.

Os pesquisadores do artigo francês levantam algumas hipóteses para explicar essa diferença. A primeira delas diz respeito à composição nutricional desses produtos. No geral, ultraprocessados são famosos por índices elevados de sal, gordura e açúcar. Além disso, fica claro que pessoas que ingerem mais desses itens tendem a comer menos vegetais, elevando o risco de doenças cardíacas.

Os pesquisadores entendem ainda que é preciso promover mais estudos sobre os aditivos usados nesses produtos e de que maneira podem surgir efeitos cumulativos da exposição a longo prazo a essas substâncias. Por fim, há um receio crescente de que compostos químicos usados em embalagens levem a efeitos negativos sobre a saúde.

“Mesmo que não esteja claro que processos específicos, compostos ou subtipos de ultraprocessados desempenham um papel mais importante, a evidência está se acumulando para uma associação entre uma maior proporção de ultraprocessados na dieta e riscos aumentados de várias doenças crônicas”, concluem.

Entre o ano passado e o primeiro semestre de 2019, vários estudos reforçaram essas conclusões. A própria coorte francesa forneceu uma associação entre ultraprocessados e riscos aumentados de câncer e de morte. Analisando os dados de 45 mil participantes, foram constatados 602 óbitos, dos quais 219 por câncer e 34 por doenças cardiovasculares. Um aumento de 10% na ingestão de ultraprocessados representou um risco de morte 14% maior.

Ressalvas

Os dois novos artigos têm as mesmas ressalvas, basicamente. A primeira questão a levar em conta é que o quarto dos participantes com um maior consumo de ultraprocessados tende a levar um estilo de vida menos saudável. Há uma maior incidência de tabagismo e uma menor prática de atividades físicas, entre outros fatores.

Ou seja, os artigos mostram uma associação entre esses produtos e desfechos negativos, mas não uma relação de causa e efeito. Essa relação, porém, foi estudada em um artigo publicado no começo do mês. Pesquisadores dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos controlaram a dieta de 20 pessoas ao longo de um mês.

Trata-se de um estudo inédito no que diz respeito a esse campo da pesquisa, com controle total sobre o que essas pessoas consumiam. Durante duas semanas, a dieta foi basicamente de ultraprocessados (mais de 80% das calorias ingeridas). Durante as outras duas, apenas alimentos frescos. As duas dietas foram praticamente iguais em termos nutricionais, tanto do ponto de vista calórico como dos macro e micronutrientes.

Durante as duas primeiras semanas, as pessoas ganharam peso. Nas duas seguintes, perderam. Foi o primeiro estudo a apontar uma relação de causa e efeito entre o consumo de ultraprocessados e a obesidade. Embora, de novo, valha a ressalva de que os participantes podiam comer o quanto queriam de cada alimento, e na média houve uma ingestão calórica maior de ultraprocessados.

O que fazer

Todos os artigos recentes têm exortado o Estado a agir para limitar o consumo de ultraprocessados, considerando que o conjunto das evidências científicas é suficiente para criar um senso de urgência na agenda de saúde pública. Para os pesquisadores da Espanha, além da promoção de alimentos saudáveis, é preciso promover restrições ao marketing de produtos comestíveis não saudáveis, nos moldes do que se fez com o cigarro, e a adoção de impostos especiais.

Os artigos são acompanhados de um editorial assinado por Mark Lawrence e Phillip Baker, da Escola de Ciência Nutricional e do Exercício da Universidade Deakin, na Austrália. Eles recordam que desde que o grupo de Carlos Monteiro cunhou a classificação NOVA, há dez anos, o corpo de evidências contra os ultraprocessados só fez crescer.

“O conselho nutricional é relativamente claro: coma menos ultraprocessados e mais alimentos frescos ou minimamente processados”, afirmam. Para eles, as ferramentas à disposição da população não permitem escolhas saudáveis. Entre outras medidas, eles sugerem que a parte frontal do rótulo informe sobre nutrientes em excesso, nos moldes do que é avaliado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Alertas como os adotados no Chile em 2016 sofrem a oposição da indústria de alimentos e, mais recentemente, do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem se posicionado a favor do modelo proposto pelas fabricantes desses produtos. A alegação é de que uma espécie de semáforo com as cores verde, amarelo e vermelho para os nutrientes-chave é um sistema mais informativo.

Em entrevista na última segunda-feira (27) ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Mandetta defendeu ainda acordos voluntários de reformulação de produtos, como os assinados pelo Ministério da Saúde em 2007 para a redução do sal e em 2018 para a redução do açúcar. Reportagem do Joio mostrou que a maior parte dos produtos mais consumidos não terá de promover readequação para cumprir as metas firmadas no ano passado e que, mesmo se exitoso, o acordo significará uma redução de menos de 2% no consumo de açúcar do país.

Essa questão também é abordada no editorial publicado pelo BMJ. “Formuladores de políticas públicas deveriam mudar as prioridades da reformulação de produtos – que corre o risco de posicionar alimentos ultraprocessados como uma solução para os problemas alimentares – para uma ênfase maior na promoção da disponibilidade, do preço e da acessibilidade de alimentos frescos ou minimamente processados.”

Foto em destaque: Giu Levy. Nupens/USP

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