É a segunda vez em que uma gigante da indústria alimentícia reclama formalmente de nossas investigações
Não uma, mas duas vezes a multinacional de alimentos Nestlé notificou O Joio e O Trigo após publicação de materiais referentes à empresa. Sem nenhum contato prévio da assessoria de comunicação —prática mais comum em casos do tipo—, foi o vice-presidente de Assuntos Jurídicos, de Compliance, Assuntos Institucionais e Relações Governamentais da corporação, Flávio de Souza, quem assinou e enviou, no último dia 7, duas longas cartas à nossa equipe de jornalistas.
Em tom ácido, ele se queixa de uma reportagem e de uma série de postagens em uma rede social. O representante da companhia não fala em acionar a Justiça, mas convida “a melhor avaliar, daqui em diante, qualquer informação divulgada sobre seus produtos”.
É a segunda ocasião em que uma gigante de ultraprocessados reclama formalmente sobre nossas reportagens. Em 10 de julho de 2018, a Coca-Cola notificou extrajudicialmente o Joio por “uso indevido da marca” e solicitou a retirada de quatro imagens (usadas diversas vezes anterior e posteriormente em outros veículos) do site.
A Nestlé, por sua vez, reclama do texto “Nestlé lança calculadora que induz a consumir açúcar em excesso”, publicado em 3 de junho. Também cita uma série de imagens divulgadas no recurso stories do Instagram, que mostram diferentes tipos de selo de advertência frontal em alimentos sobre excesso de açúcar, gorduras e sal, com o exemplo de produtos da companhia.
A reportagem aborda uma ferramenta on-line da multinacional para que usuários possam controlar a quantidade diária de ingestão de açúcar. A conclusão é de que o mecanismo é controverso, pois separa o ingrediente utilizado em preparações caseiras daquele que vem em produtos processados e ultraprocessados, o que pode confundir e levar à indução de maior consumo.
Para o primeiro grupo, a Nestlé usa o limite de ingestão diário proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 50 gramas de açúcar. Mas, para o segundo, ou seja, para produtos como aqueles que a companhia faz e vende, o limite estabelecido é mais alto: 90 gramas. Há, no próprio funcionamento da ferramenta, dois pesos e duas medidas para medir o ingrediente.
Souza afirma que “a referida publicação traz diversos questionamentos sobre a ferramenta e faz várias alegações que são, no mínimo, discutíveis”. Ele nega tanto que a calculadora tenha dois pesos e duas medidas quanto que possa induzir usuários a consumirem açúcar em excesso. “A reportagem dá a entender que a Nestlé se utiliza deste procedimento de maneira tendenciosa, aumentando os limites para seus próprios produtos”, diz.
A distinção nas medidas se deve à adoção de duas metodologias que fixam diferentes limites, segundo o executivo da empresa. No primeiro caso, dos 50 gramas diários recomendados pela OMS, não são considerados açúcares naturalmente presentes em alimentos. No outro, toma-se a sugestão de 90 gramas diários da Federação de Alimentos e Bebidas da Europa, que, por sua vez, contabiliza os açúcares de alimentos in natura.
“O índice europeu não foi escolhido aleatoriamente pela Nestlé, mas foi utilizado simplesmente porque nem a OMS, nem a legislação brasileira, possuem limites que levam em conta os açúcares adicionados e os açúcares intrínsecos simultaneamente”, ele declara. Aqui, leia na íntegra a primeira carta enviada pela Nestlé.
Ao negar que a empresa poderia levar ao aumento do consumo de açúcar, o executivo afirma que a ferramenta é “simples” e não tem pretensões de fazer uma análise nutricional completa de uma dieta. De acordo com ele, o intuito é que o consumidor possa medir o ingrediente no preparo de receitas caseiras.
A Nestlé identifica a quantidade de açúcar nos produtos de forma voluntária em embalagens desde 2010. Souza, porém, admite que não há a mesma iniciativa para um aviso sobre limite diário do ingrediente. Não há esse indicativo no rol de mercadorias da empresa. “A legislação brasileira não traz uma disposição sobre o tema e é exclusivamente por isso que as embalagens dos produtos da Nestlé não trazem tal informação.”
“A Nestlé obedece toda a legislação aplicável ao tema, incluindo a RDC 360/03 [Resolução da Diretoria Colegiada] da Anvisa, que regulamenta o tema da rotulagem nutricional no País”, acrescenta.
O executivo da empresa critica, ainda, referências na reportagem ao biscoito Bono e ao Nescau Prontinho Light, alegando que podem compor uma dieta saudável. Os dois são itens ultraprocessados, cujo consumo deve ser evitado, de acordo com a recomendação do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Souza diz que a reportagem em questão “se mostra altamente tendenciosa e possui claro viés contra a Nestlé”.
O Joio gostaria de lembrar que o texto alvo de críticas integra a editoria de Conflito de Interesses, cuja preocupação é investigar como iniciativas vestidas de boas intenções podem ser usadas para atingir fins não alegados originalmente. A reportagem ouviu a empresa e a avisou sobre a publicação previamente, tendo ainda, como é de praxe das boas condutas do jornalismo, o cuidado de contemplar o contraditório.
Contra produtos da Nestlé?
Em outro comunicado enviado ao Joio, o vice-presidente da Nestlé reclama de uma série de imagens publicadas no recurso stories de nosso perfil no Instagram. A sequência de fotos integra o projeto O Joio no Rótulo, que busca dar visibilidade à alta quantidade de açúcar, gorduras e sal em vários os tipos de produtos ultraprocessados, independente da marca ou de supostas alegações sobre serem saudáveis.
“As referidas postagens têm por claro objetivo denegrir os produtos da Nestlé, mostrando-os sob uma ótica enviesada, na qual eles são tido como ‘não-saudáveis’”, afirma Souza. “É difícil crer que seja uma mera coincidência que três destes quatro produtos retratados sejam comercializados pela Nestlé”, acrescenta.
O Joio esclarece que, sim, por questão de critérios jornalísticos, que levam em conta qual a relevância de tratar de um assunto em determinado momento, parte dos produtos escolhidos pertence à Nestlé —não foi arbitrário, mas nem, tampouco, pessoal.
O objetivo da postagem era comparar o uso de dois tipos de selos de advertência utilizados nas embalagens de alimentos, deixando à vista do leitor qual dos modelos evidencia mais pronunciadamente os índices de açúcar, gorduras e sal. A rotulagem de alimentos está em discussão na Anvisa, no Brasil, e a acompanhamos sistematicamente.
A publicação na rede social mostra, de um lado, o atual sistema de rotulagem utilizado não só pela Nestlé, mas por outras marcas da indústria da alimentação. Este método dá um score para cada um dos nutrientes de um produto. De outro, trazia os selos recomendados pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que são polígonos pretos em fundo branco com o alerta “Alto em” para informar sobre excesso de sal, gorduras e açúcar.
Após comparar os dois modelos, a sequência no stories perguntava sobre qual alimento seria mais saudável para aqueles usuários que visualizaram a publicação. Nenhum dos itens foi avaliado desta maneira pela maioria dos seguidores do Joio no Instagram.
O vice-presidente da Nestlé declara que fizemos a postagem “com o único objetivo de induzir o consumidor a concordar com o ponto de vista claramente tendencioso”. Afirma, ainda, que o perfil de nutrientes da Opas é “arbitrário”. Trata-se do sistema usado para definir se um alimento é “alto em”, e que utilizamos no Joio no Rótulo por ser aquele que segue as diretrizes da OMS e as evidências científicas que apontam a necessidade de limitar ou evitar o consumo de certos produtos.
Nesse segundo comunicado (leia a íntegra aqui), Souza também se empenha (gasta uma página inteira) em defender o Sopão Maggi, um dos produtos ultraprocessados que foram escolhidos para a sequência no stories.
O alimento é considerado alto em sódio, segundo o perfil de nutrientes da Opas, e a própria Nestlé assume que está trabalhando para reduzir a quantidade do ingrediente. O vice-presidente informa que a empresa tem buscado reformular o portfólio nos últimos anos, oferecendo itens com menos sal, gorduras e açúcar.
Imagem em destaque: “Odisseu e Polífemo”, de Arnold Böcklin (1827-1901)
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