“Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra.” A frase do poeta britânico John Donne (1572-1631), eternizada na epígrafe de Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway (1899-1961), ressoou pelo auditório da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) na última sexta-feira (16). Não era um sarau ou outro evento literário, contudo.
Na verdade, o local recebeu um dos principais especialistas em saúde e alimentação do mundo, o epidemiologista e pesquisador Boyd Swinburn. Professor de Nutrição Populacional e Saúde Global da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, ele se tornou conhecido por ser um dos primeiros a utilizar o termo sindemia para se referir à coexistência de três grandes epidemias (ou pandemias) que afetam os países invariavelmente.
Obesidade, desnutrição e mudanças climáticas ocorrem de forma simultânea e estão inter-relacionadas na medida em que têm causas e efeitos em comum, complicando uns aos outros. A situação se agrava com a inércia política para enfrentar o tema. Estas conclusões estão no relatório “A Sindemia Global da Obesidade, da Desnutrição e das Mudanças Climáticas”, de uma comissão da revista The Lancet, do qual o neo-zelandês é um dos autores. O Joio tratou da publicação ainda em janeiro.
Isso é, Swinburn fala em sindemia para reforçar a noção de que nenhum dos três problemas deve ser compreendido isolada ou individualmente. “Pessoas não são ilhas. Nenhum ser humano é um sistema isolado”, ele disse na FSP-USP como se estivesse parodiando John Donne. “Quando falamos dos indivíduos, costumamos pensar de um jeito isolado. Mas o indivíduo escolhe a sua comida ou opta por aquilo que tem à disposição?”, ele questionou.
Os fatores de risco para o desenvolvimento e/ou as doenças crônicas não transmissíveis são multifatoriais, mas estão relacionados, como vêm demonstrando uma série de evidências científicas nos últimos anos, à alimentação. Aqui, há uma armadilha. É muito comum a noção difundida — e até equivocada— de que comer é um ato apenas individual, descolado de contextos sociais e políticos. Uma noção que o neozelandês tomou cuidado de desconstruir, expondo, por sua vez, um olhar sistêmico sobre a alimentação.
O epidemiologista fez uma palestra e participou um debate por ocasião do lançamento da versão em português do relatório de uma comissão formada pela The Lancet, uma das revistas mais conceituadas mundialmente nas discussões sobre ciência e saúde pública. O evento, na sexta, foi organizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição em Saúde (Nupens), da FSP-USP, e pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, com o apoio do Instituto Ibirapitanga.
O documento não deixa dúvidas quanto a uma questão. A obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas estão relacionadas a um mesmo denominador em comum: um sistema alimentar global que se apoia no consumo de itens ultraprocessados, seja por não serem saudáveis, como diz a classificação NOVA, ou por suas pegadas ecológicas, como mostram evidências recentes.
“Todos nós estamos sujeitos ao mesmo sistema alimentar”, afirmou Swinburn na FSP-USP. “Por alguma razão, não estamos conseguindo adotar uma postura que tenha a saúde como o principal objetivo. Nossos corpos são formados por sistemas e os problemas que estão sendo criados por sistemas. São problemas causados por sistemas de várias naturezas.”
Contra a sindemia, é importante a ação dos Estados nacionais, segundo o epidemiologista. “Precisamos começar pensando não pelo indivíduo. Precisamos pensar o sistema como um todo. Quem toma as decisões, quem faz as leis. Há decisões que implicam no sistema como um todo. Essa é uma forma de pensar sindêmica, incluindo o meio ambiente e todo o entorno”, comentou o pesquisador neozelandês.
Ou seja, segundo ele, os ultraprocessados podem ter que passar pelo mesmo tipo de regulação que os cigarros sofreram outrora, com o tratado global da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Esta recomendação, aliás, consta no relatório da Lancet.
Tais iniciativas, no entanto, têm obstáculos. Esbarram na indústria de alimentos, que trabalha pela “inércia política” sobre o tema. Lobbies, fabricação de evidência, cooptação de pesquisadores, corrupção de políticos, volumosas e gordas campanhas publicitárias… As ferramentas são as mais variadas. Não raro, as empresas de alimentação usam de uma ou mais delas para impedir a regulação do setor e manter tudo como está.
Uma boa amostra destas estratégias, vale lembrar, está nas editorias sobre comer bem e comer mal ou conflito de interesses aqui do Joio.
Swinburn afirmou, porém, que não importa o obstáculo, a difusão do conhecimento sobre a sindemia global pode ajudar a romper este quadro. “Precisamos entender a complexidade para fazer uma mudança. Nós precisamos juntar forças e entender como essas áreas se cruzam, desnutrição, obesidade e mudanças climáticas. Precisamos alinhar e entender essas áreas”, concluiu.
Discutir sem polarizar
Além de Swinburn, o encontro teve a participação do médico epidemiologista Carlos Monteiro, do Nupens, do agrônomo José Graziano, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), e da pesquisadora e professora da FSP-USP Gabriela Marques Di Giulio. Eles participaram de um debate sobre o relatório com mediação da nutricionista Ana Paula Bortoletto, líder do programa de alimentação saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
A discussão propiciou um destes raros momentos em que é possível haver divergência, em tendências e debates, sem que haja polarização. Lembrou que existem meios para conduzir boas discussões fora de lógicas binárias e dicotômicas, visando ao objetivo de construir conhecimento de forma coletiva. Recordou também de que é possível discordar de outra pessoa, contrapondo evidências científicas, e fazer isto de forma civilizada.
Logo tomou a palavra e Graziano afirmou que não concordava com argumentos de Swiburn. Eles contêm um “viés britânico”, segundo o agrônomo. De acordo com o ex-diretor da FAO, as ações globais de combate à sindemia deveriam começar pelas nações desenvolvidas.
“O relatório trata muito da diferença entre os ricos e pobres. Mas, mais do que isso, há uma diferença entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Isso faz uma diferença brutal, porque o que temos visto no cenário internacional é que a retórica do primeiro mundo é muito positiva, mas a prática é inversa. O bloqueio da última proposta para dietas saudáveis na assembleia geral das Nações Unidas veio de países europeus liderados pela Itália”, detalhou Graziano.
“A forma como a gente se adapta ajuda a mitigar o efeito. Isso está dito no relatório, mas não é enfatizado”, acrescentou.
Graziano também criticou a noção de que a agricultura, mesmo o agribusiness, é um dos setores que mais contribuem para as mudanças climáticas. Ele declarou que, apesar de a agropecuária voltada à exportação ser de fato uma grande emissora de gases de efeito estufa, é também um setor que sequestra carbono e mitiga os impactos ambientais.
O ex-diretor da FAO ainda disse que os sistemas alimentares não estão circunscritos apenas à produção e consumo dos alimentos — “from the farm to the fork”, citou a expressão em inglês. “A parte mais importante está depois do garfo, na super-estrutura, que condiciona o sistema. São as instituições, como as universidades. Nós não mudaremos o sistema alimentar se não mudarmos as instituições”, complementou.
Outro aspecto criticado tanto na apresentação de Boyd quanto no relatório da Lancet é a abordagem que os dois fizeram sobre os problemas relacionados à desnutrição. Obesidade, mudanças climáticas, desnutrição, apesar de ligadas à mesma sindemia, têm causas bem diferentes, de acordo com o médico Carlos Monteiro.
“Sobre a desnutrição, o Brasil é um bom exemplo. Há tipos de desnutrição. Só a prosperidade econômica não resolve o problema da desnutrição. É necessário que haja prosperidade com igualdade”, disse o epidemiologista brasileiro. “O que acontece com a obesidade e a mudança climática? Têm relação com um tipo de prosperidade econômica. Existe muita pesquisa sobre obesidade e mudança climática, mas falta sobre a desnutrição.”
Monteiro é o responsável por fundamentar a classificação NOVA, a qual divide os alimentos conforme o grau, o tipo e o propósito de processamento. O epidemiologista deu a primeira pista de que alimentos ultraprocessados fazem mal e cunhou o termo, utilizado no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.
Ele também disse que as empresas que produzem ultraprocessados precisam sofrer regulação semelhante à que passou o setor do tabaco. Monteiro afirmou que a sociedade ainda não absorveu a noção sobre os danos causados por esses produtos. “A indústria de alimentos está no ataque”, declarou.
“A sociedade civil como um todo está comprando o discurso da indústria de alimentos. O poder econômico é usado para bloquear os governos nacionais e até os organismos internacionais. Esse poder econômico não serve para a sociedade civil. A indústria não conseguiria comprar toda a sociedade civil, mas coopta com a narrativa. Dizem que os ultraprocessados não fazem não fazem mal e que todos os alimentos engordam.”
Segundo Monteiro, é necessário melhorar a divulgação científica das evidências sobre os ultraprocessados como ocorreu anteriormente com o tabaco. “Quando a ciência mostrou de forma taxativa que o caubói [da propaganda de cigarros] morria de câncer de pulmão, isso colocou a indústria na defensiva.”
“A gente ganhou a narrativa do tabaco. A indústria desistiu de dizer que o tabaco era algo interessante. Enquanto a gente não tiver essa clareza sobre os alimentos, não vai conseguir colocar a sociedade civil do nosso lado”, afirmou.
O contexto social e político para a regulação dos ultraprocessados, no entanto, não é favorável. Isto afirmou a pesquisadora Gabriela Marques Di Giulio, da FSP-USP. Se a indústria de alimentos está no ataque, a ciência e os movimentos de defesa do meio ambiente estão na defensiva, de acordo com ela.
“Há uma proposta de fragilizar o licenciamento ambiental em discussão no Brasil. Ao mesmo tempo, existe um movimento de negação da questão climática e o aumento da dependência de combustíveis fósseis, que levam a uma série de ameaças e incertezas a todos os compromissos assumidos pelo país nos últimos anos”, declarou a pesquisadora.
Reverter este cenário é, segundo Di Giulio, um trabalho de longo prazo. Uma das saídas seria incentivar a educação sobre discussões ambientais “A gente precisa também incentivar a alfabetização ecológica. As pessoas precisam estar cientes das consequências das suas ações.”
“Precisamos pensar a sustentabilidade nas suas diversas dimensões, em solidariedade com o planeta. Rever modelo de produção e de consumo, não só um capitalismo travestido de verde. E pensar os processos que existem dentro das nações, mas entre as nações”, concluiu.
O debate está disponível na íntegra no vídeo abaixo (começa a partir dos 30 min. e 41 seg.).