Indústria escancara tensão entre aposta na comida de verdade e fidelidade à comida-porcaria

A indústria de alimentos está em um dilema. Tapar o sol com a peneira e correr o risco de se queimar, ou admitir a água no joelho e sair em busca de soluções rápidas, mas que podem custar caro lá na frente?

Esse dilema divide as tropas. Isso ficou explícito durante a Food Ingredients South America, uma feira de fabricantes de ingredientes para a indústria de produtos comestíveis realizada no final de agosto em São Paulo. A polidextrose brigou com o couve-flor debaixo de uma sacada. A polidextrose saiu ferida. E a couve-flor, despedaçada.

Em outras palavras, a treta se tornou um debate agressivo, irritadiço. Os estandes da feira refletiam essa divisão. Aprofundar o modelo vigente nos últimos 40, 50 anos, com formulações alimentícias à base de aditivos que em nada se parecem com a comida como a conhecíamos, ou fazer o caminho de volta em direção à comida de sempre, com menos aditivos e mais ingredientes iguais aos que encontramos em casa?

A Pop Rocks prometia o melhor açúcar “explosivo” do mercado, retomando com força total um hit das cáries dentárias dos anos 1990 – lembra o pirulito que “explodia” na boca e causava o maior rebuliço na hora do recreio? Enquanto isso, N estandes ofereciam alho e cebola desidratados, temperos tradicionais e muitas, muitas, muitas variações do coco. Haja coco.

Um estande exibia o sabor “natural” do blueberry em dezenas de produtos. E outro prometia dar a tudo as cores vibrantes do Exberry, uma série de corantes extraídos de frutas. Não basta tomar água aromatizada com frutas: é preciso adicionar Fortibone, que garante fortalecer seus ossinhos.

Nesse sentido, aliás, há sempre uma infinidade de suplementos milagrosos surgindo na mesma velocidade em que o cérebro presidencial apresenta boas ideias. Aliás, é de se desconfiar que a família do presidente da República tenha ajudado a desenvolver algumas das inovações da feira.

As semelhanças com o atual ocupante do Planalto não se encerram por aí. O bicho pegou mesmo foi na conferência. O primeiro dia de feira começou com um debate sobre clean label – em tradução literal, rótulo limpo, um jargão para descrever produtos com poucos ingredientes e, via de regra, pouco ou nenhum aditivo artificial. Executivos de cinco empresas apresentaram o que têm feito para apresentar produtos que atendam a essa tendência.

“Vai ter uma fase de transição, que inclusive a gente está experimentando agora, mas a tendência é que nos próximos anos a gente tenha um crescimento do clean label”, resume Sergio Pinto, executivo sênior de Inovação e Novos Negócios da BRF. “Tem uma crise institucional generalizada. O consumidor desconfia da corporação, desconfia do governo. Tudo que é grande é meio evil.” Então, na visão dele, é preciso se comunicar com clareza e se abrir a ouvir o consumidor.

A insatisfação veio à tona no começo do debate seguinte, sobre como a indústria tem feito esforços em prol do dirty label, se nos permitem entrar no clima de usar expressões em inglês a rodo. O “rótulo sujo” define bem a tentativa de evitar que a Anvisa adote alertas para sal, açúcar e gordura na parte frontal das embalagens.

Should I stay or should I go?

Abrindo os trabalhos, Márcia Terra, da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), desautorizou os movimentos dos colegas de indústria. “Fiquei até assustada com o painel anterior porque foram usadas expressões que a gente combate bastante. Para a Sban não existem alimentos bons ou ruins. Existem dietas desequilibradas.”

O nome do debate anterior falava abertamente em “alimentos minimamente processados”, uma nomenclatura proposta pela classificação NOVA, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da USP. Criada há dez anos, essa classificação propõe romper com o paradigma de olhar apenas para os nutrientes e sugere se voltar para a extensão e o propósito do processamento.

Foi a base para o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, e para uma série de pesquisas que têm revelado danos causados pelos ultraprocessados. O esforço discursivo da indústria nos últimos anos tem se concentrado em desacreditar a teoria e o professor Carlos Monteiro, responsável por ela, negando haver qualquer diferença entre alimentos in natura e biscoitos, cereais açucarados, achocolatados, salgadinhos, macarrões instantâneos e companhia.

Então, uma mesa de debates sobre clean label passa recibo. Se não de culpa no cartório, de que existe uma demanda do consumidor por produtos menos distantes do que conhecíamos até há poucas décadas. “Essa campanha que foi feita contra o alimento industrializado de uma forma muito agressiva e muito rasa levou a esse modismo de clean label, de simple, de expressões muito mercadológicas que falam muito pouco”, continuou Márcia Terra. “O rótulo de um alimento não vai recomendar que seja consumido ou não. Ele só informa o que o produto tem.”

O modismo também atende pelo nome de obesidade. Quase 20% dos brasileiros estão obesos, segundo o Vigitel, um inquérito telefônico realizado anualmente pelo Ministério da Saúde. E 55,7% da população apresenta sobrepeso. Nos últimos anos, e particularmente nos últimos meses, várias pesquisas evidenciaram como um maior consumo de ultraprocessados pode estar ligado a ganho de peso, doenças crônicas e mortalidade precoce.

Laurence Botinhon, supervisor de Pesquisa e Desenvolvimento da Kraft Heinz, colocou o bode na sala. Digo, o Guia na mesa. Ele falou que o documento do Ministério da Saúde virou a base para desenvolver novos produtos. Entre outras coisas, as diretrizes oficiais recomendam evitar ultraprocessados e fazer de alimentos in natura a base da dieta.

“Vai ter espaço para os dois tipos de produtos por uma necessidade de consumo. Hoje é uma tendência de nicho, mas o clean label vai crescer forte no futuro”, resumiu Botinhon.

Falar sobre o Guia na frente da turma da mesa seguinte é quase como levar O manifesto comunista para uma reunião do PSL. É como apresentar a Constituição para o presidente da República. Luis Madi, presidente do Instituto Tecnológico de Alimentos (Ital), uma estatal paulista que sobrevive da prestação de serviços às fabricantes de industrializados, somou-se ao coro dos que querem aproveitar os ventos políticos para revogar o documento do Ministério da Saúde.

O Ital foi criado a pedido das indústrias justamente na esteira das inovações tecnológicas que permitiram usar fragmentos de alimentos para produzir formulações que se parecem alimentos. É um dos símbolos do ápice da ideia de que nossa comida poderia ser produzida em laboratório, com limites infinitos para sabores e misturas.

Então, admitir que existe um problema nesses produtos representaria a morte dessa era. E significaria admitir que a teoria de Monteiro está certa. Também significaria encarecer demais os processos. Um dos segredos dos ultraprocessados é que, por serem fabricados a partir de fragmentos, são extremamente baratos. E têm um preço muito elástico, que é dado muito mais pela marca que pelo custo: você pode achar cereais de “milho” iguais no supermercado, mas provavelmente uma criança só irá querer o do tigre.

Madi resiste à ideia de que é preciso empreender o caminho de volta. “Falar de clean label, de uma série de termos que o consumidor nem consegue entender direito, mas ele é o dono da verdade. E ele vai decidir por razões não tão adequadas.”

Ele afirmou que o Guia, publicado em 2014, é o grande culpado por criar uma “confusão muito, mas muito forte no consumidor”. Antes disso, a galera estava tranquilona, entendendo absolutamente tudo sobre goma xantana, sorbato de potássio e benzoato de sódio. Estava bem fácil de usar tabelas de informação nutricional que mostram porções de 13 mL ou 16,5 gramas. E é muito legal usar molhos de iogurte que não têm iogurte, produtos de mel que não têm mel e salgadinhos de presunto que não têm presunto.

Mostrando uma reportagem do Joio, ele lamentou que a FAO, Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, tenha se somado a uma espécie de festim diabólico com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e seu braço regional, a Organização Panamericana de Saúde (Opas). Recentemente, a FAO publicou um relatório que compila as evidências científicas associando o consumo de ultraprocessados a um perfil nutricional pior e a desfechos negativos para a saúde.

“Existe na realidade uma articulação que prejudica em muito o desenvolvimento da indústria de alimentos, mas muito mais em relação ao consumidor. O consumidor é a pessoa central que tem que ser bem informada”, afirmou Madi. Ao lado dele, Márcia Terra concordou que é uma boa ideia mexer no Guia, fruto, segundo ela, de governos que faziam prevalecer a ideologia por sobre a ciência.

Limites

A indústria de ultraprocessados é tão grande que tem condições de manter um pé em cada canoa. Pode criar produtos com poucos ingredientes, caros, com embalagens clean, para um público de classe média e alta. E deixar os ultraprocessados para os pobres. Essa é uma tendência clara nos Estados Unidos, agravando a desigualdade alimentar sempre existente. No Brasil, apesar da carência de dados, sabe-se que os alimentos in natura estão cada vez mais caros e que os ultraprocessados se tornaram onipresentes e baratos.

Mas elementos trazidos à discussão expõem os limites de acender uma vela para cada santo. Botinhon recordou a campanha publicitária do catchup Heinz, que colocou na parte frontal da embalagem a lista de ingredientes, pequena e composta apenas de elementos que todos conhecemos. “Por incrível que pareça esse catchup é clean label desde o começo. A gente simplesmente não explorava.”

Mas a campanha teve dois efeitos colaterais – “uma reação muito estranha”, nas palavras do executivo. Parte do público não podia acreditar que um produto que fica meses na prateleira pudesse ter tão poucos ingredientes e nenhum aditivo. Outra parte passou a cobrar: se o catchup era assim tão bom, os outros produtos da marca, com tantos ingredientes, eram ruins? A maionese saiu arranhada dessa história. Desandou.

Outro desafio diz respeito à conservação dos produtos. Aditivos são a base de itens comestíveis que podem ficar meses na prateleira e serem exportados para qualquer canto do mundo sem estragar. Você pode fazer o teste em casa e ver que alguns desses produtos só vão estragar depois do fim do mundo (que está cada vez mais próximo). Como explicou Botignon, no Brasil demora no mínimo 15 dias entre um produto da Kraft Heinz ser fabricado e ser totalmente distribuído.

É por isso que coletivos e organizações como o Slow Food falam da importância de circuitos curtos de consumo, ou seja, da ideia de que você procure alimentos frescos que vêm do seu entorno.

Como já abordamos no Joio, essa é a tensão entre uma mudança mais profunda, que demanda toda uma reestruturação do nosso sistema alimentar, calcada em agricultura camponesa e pequenas empresas, e uma mudança mais superficial, que consiste apenas em uma melhoria leve do que corporações hoje nos entregam. Com muito dinheiro e contando com o senso comum, as empresas têm de tudo para fazer prevalecer a segunda via, mudando para que tudo continue igual.

Na Nestlé, Juliana Lofrese, gerente de Nutrição, Saúde e Bem-Estar, conta ter feito uma pesquisa com 1.500 consumidores e encontrado uma forte associação de imagem entre natural e saudável. Ela recordou que um produto com 70% de açúcar pode ser visto como natural, então, comunicar-se com as pessoas para desfazer alguns conceitos pode ser bom.

“A gente teve muito receio de comunicar. É mais fácil ficar na zona de conforto. Mas hoje a gente está se deparando com um momento em que a gente tem que falar”, afirmou. Com base nessas pesquisas produtos estão sendo reformulados para excluir ou incluir ingredientes. E alguns ingredientes entram numa espécie de sinal amarelo quando começam a levantar desconfiança.

Renata do Nascimento, diretora de Pesquisa e Desenvolvimento da Seara, falou sobre a linha Nature, feita apenas como aditivos naturais. São hambúrgueres, almôndegas, cortes de frango e embutidos. “Alguns são pouco processados, como hambúrguer, e outros que são mais processados, como a salsicha, que passa por um processo de fabricação mais agressivo.”

Além da reformulação de produtos, essa mudança coloca o desafio de pensar em embalagens que ajudem a aumentar o tempo de duração dos produtos. E quais processos podem ser usados para garantir textura e sabor sem lançar mão dos aditivos clássicos. “Quando a gente quer entrar numa linha mais natural, o processo tem que estar muito bem estudado, muito bem conhecido”, continuou a diretora da Seara.

Enquanto os executivos da primeira mesa de debates trabalham para que as empresas se apropriem das mudanças, fazendo com que a tendência se torne lucro, os da segunda mesa consideram um disparate passar recibo desse jeito e recomendam fincar pé na defesa dos ultraprocessados – nunca, pelamor, com esse nome.

Márcia Terra, da Sban, da boca de quem nunca sairá a palavra maldita, considera que dar ouvidos demais pode fazer a indústria virar refém. “Entrar nessa de fazer um produto com menos ingredientes porque é o que a galera quer é entregar os pontos”, ela diz. “Ele [o consumidor] não tem capacidade e não precisa saber que aditivo é aquele. Ele só precisa saber que esse aditivo é seguro e foi aprovado.”

Por João Peres

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