Comida saudável deveria ser tão importante quanto trabalhar para o bom desempenho escolar; o problema é tanto de natureza pública quanto privada
O início do ano letivo é um período de preocupações. Horários, matérias, uniforme… Os problemas se multiplicam. Mas há mais um sobre o qual é necessário tratar: a alimentação nas escolas. A comida de milhões de brasileiros em idade escolar é um tema tão importante quanto notas e desempenho.
Pelo menos um terço da população entre 5 e 9 anos e um quinto daquela entre 10 e 19 anos estão acima do peso. Além disso, 14,2% do grupo mais jovem e 5% do mais velho estão obesos. Os dados são da Pesquisa Nacional de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-2009, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Há algum tempo, sabe-se que a alimentação é fator preponderante para doenças crônicas não transmissíveis — e a obesidade, entre elas. No caso de crianças e adolescentes, muito mais, uma vez que os jovens costumam ser mais ativos fisicamente e não levam a mesma vida sedentária e estressante que atormenta os adultos.
Como já mostramos, em especial no projeto O Joio no Rótulo, os alimentos ultraprocessados são campeões em níveis de açúcar, gorduras e sal, e é crescente a quantidade de evidências científicas que os relacionam ao ganho de peso e a doenças, mesmo ao risco de morte.
Mas os ultraprocessados são, também, os campeões das lancheiras — às vezes, até das merendas nas redes pública ou privada. Achocolatados, bisnaguinhas, bolachas, iogurtes saborizados, salgadinhos… A lista é extensa, e engana-se quem acha que consumir estes produtos seja simplesmente uma questão de livre arbítrio.
Crianças e adolescentes estão em um processo de desenvolvimento como seres vivos, mas, ainda, como cidadãos e indivíduos. Garantir-lhes uma alimentação saudável é mais do que preocupação de saúde pública. É um compromisso com o futuro.
É por tal motivo que a proteção à infância e à adolescência é prevista na Constituição Federal de 1988 como responsabilidade compartilhada de atores estatais e privados. Nem só família, nem só Estado.
Cientes deste compromisso, não podemos, como sociedade, considerar que as escolhas alimentares sejam unicamente de foro individual, principalmente entre aqueles que ainda não atingiram a maturidade.
Mesmo um cidadão adulto, pleno de suas faculdades, não é capaz de escapar de ene induções que levam a escolhas alimentares boas ou más. Para uma ou para outra, basta um empurrãozinho, como disse ao Joio o advogado Edgar Gastón Jacobs, especialista em direito do consumidor e estudioso da economia comportamental.
Além disso, preocupar-se com uma alimentação saudável não é só uma responsabilidade dos adultos, é um desejo dos mais jovens, revela um estudo da Universidade de Chicago publicado na revista Human Nature Behavior.
A pesquisa diz: cientes dos métodos desleais usados nas propagandas de itens ultraprocessados, adolescentes passaram não só a fazer escolhas alimentares melhores como também deixaram de se identificar positivamente com estes alimentos.
Satisfazer esta demanda por comida saudável, no entanto, não passa apenas por criar regras exclusivas para as escolas. É preciso olhar para o que acontece nos entornos.
Existem regras para restringir a venda de tabaco e/ou álcool próxima de unidades de ensino. Por que não fazer o mesmo com os ultraprocessados?
As repórteres Mylena Melo e Nathália Iwasawa mostraram que, em Minas Gerais, há um impasse envolvendo uma lei sobre comida escolar. Elas relatam: as políticas de saúde pública para alimentação nas escolas se tornam inefetivas quando limitadas apenas ao que acontece dentro das instituições de ensino — isso é, sem, também, o devido regramento sobre o que está fora.
Vale lembrar, a regulação da publicidade infantil é uma medida que toca tanto no interior quanto no exterior do ambiente escolar. Uma boa quantidade de evidências científicas reforça a necessidade de impor restrições às propagandas de alimentos.
Quem é contra argumenta que limitar a publicidade seria uma interferência indevida do Estado em tema da vida privada. Quem diz isto, no entanto, pronuncia apenas uma parte limitada da questão.
Reclama-se da hipertrofia do poder público. Mas e quando os agentes privados são tão ou mais poderosos do que sociedades inteiras? E a interferência indevida das grandes corporações privadas nos assuntos de bem público?
A multinacional Danone tem um case de sucesso sobre o assunto, que revelamos por aqui. O projeto 1, 2, 3 Saúde! alcançou 300 mil crianças, oferecendo orientações nutricionais controversas em ambientes escolar. O programa recomendava que crianças ingerissem mais itens lácteos, que são —veja só a coincidência!— o carro chefe dos produtos da empresa.
As preocupações de professores, pais, mães e educadores parecem não ter fim na volta às aulas. Por um lado, trazer mais um problema à tona pode parecer desagradável.
No entanto, não faltam, por outro, iniciativas que podem tornar a vida de todos eles mais fáceis no quesito alimentação. Seja no meio político ou na sociedade civil, existem projetos com esse objetivo.
Um deles, por exemplo, está pronto há 17 anos para votação na Câmara dos Deputados, em Brasília. Trata-se de uma proposta do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, que prevê a regulamentação da publicidade infantil. É um pequeno passo. Mas pode ser um primeiro para aliviar essa barra tão cheia de preocupações tão difusas.