À diferença do que dizem fabricantes, estudo confirma que modelo de rotulagem adotado de forma pioneira no Chile não prejudica salários, empregos e lucros
A maior alegação das corporações de alimentos e bebidas contra a regulamentação por meio da rotulagem frontal perde o jogo contra a ciência. Mais uma vez. Um artigo publicado na última terça-feira (11) na revista Nutrients trouxe resultados que se somam às evidências sobre a eficácia do modelo chileno na luta inglória de combate à obesidade e às doenças crônicas não transmissíveis.
“Os resultados e os lucros no mercado de trabalho não foram afetados por essa regulamentação [de rotulagem frontal]”, concluem os pesquisadores da Universidade Adolfo Ibáñez, da Universidade do Chile, do Banco Central do Chile e da Universidade da Carolina do Norte.
O artigo “Front-of-Pack Labeling in Chile: Effects on Employment, Real Wages, and Firms’ Profits after Three Years of Its Implementation” (“Rotulagem frontal de embalagens no Chile: efeitos sobre emprego, salários reais e lucros das empresas após três anos da implementação”, em tradução livre) reuniu cientistas que se dedicam à nutrição e à economia, e apresenta um esforço equacional para provar que as consequências do modelo “não mostram nenhum efeito” no emprego agregado nem sobre o tamanho das empresas e que os efeitos são “negligenciáveis” sobre os salários e a margem bruta de lucros.
“Se, devido aos regulamentos de rotulagem frontal algumas empresas do setor de alimentos e bebidas diminuem, por exemplo, e o emprego é obtido por outras empresas dentro do mesmo setor, é razoável dizer que o efeito das regulamentações sobre o emprego nesse setor é neutro”, afirmam.
Para chegar a tais resultados, foi feita uma análise que compara a situação antes e depois da legislação. Os autores vasculharam e analisaram dados mês a mês da agência de arrecadação de impostos do Chile (Servicio de Impuestos Internos), de janeiro de 2013 a junho de 2019, o que permitiu concluir que o número de empresas de alimentos e bebidas cresceu em uma taxa significativa de 0,3% ao mês após a primeira fase em relação ao grupo de empresas de outros setores da economia.
“Esses resultados dissipam o argumento usual, proclamado pela indústria de alimentos e bebidas e alguns think-tanks, de que políticas regulatórias, como impostos e/ou rotulagem, têm um efeito negativo nos resultados do mercado de trabalho”, analisam os autores.
Vale lembrar que a lei em questão entrou em vigor em 27 de junho de 2016 e faz parte do Programa de Prevenção da Obesidade do Chile, que inclui políticas de restrição à publicidade infantil e à presença de ultraprocessados nas escolas, bem como o controle sobre o marketing em horários comerciais de TV e cinema.
Um modelo referência
O país foi pioneiro na política de advertência frontal nas embalagens de ultraprocessados com excesso de sal, açúcar e gordura. Desde então, foi seguido por Uruguai, Peru, Argentina, Israel e México.
Isso porque as evidências em torno da eficácia do modelo octogonal seguem ocupando os periódicos científicos. “A experiência do Chile sugere que, se regulamentos semelhantes fossem adotados em outros lugares, eles teriam resultados semelhantes”, definem os autores. E o motivo todo mundo já conhece. As empresas que detêm as maiores fatias de mercado no Chile são as mesmas multinacionais presentes em outros territórios da América Latina e do resto do mundo.
Resultados positivos na saúde coletiva da população já podem ser mensurados, o que se deve à queda no consumo de ultraprocessados abrangidos pela lei: 23,8% “alto em” calorias; 36,7% de “alto em” sódio; 26,7% de “alto em” açúcar, segundo a pesquisa chilena.
Além disso, o levantamento do perfil nutricional realizado antes e depois do primeiro ano de implementação da lei encontrou reduções significativas dos produtos obrigados a levar as advertências, sugerindo que as empresas reformularam a composição de ingredientes.
Os que não reformularam deixaram de vender. Lei do mercado. As bebidas adoçadas tiveram uma queda de 23,7% durante um ano e meio de lei em vigor. E os cereais matinais, cujo protagonismo é daquele tigre famoso, sentiram reduzir 26,4% do seu consumo.
A quantas anda essa história no Brasil?
Em terras tupiniquins, a argumentação da indústria para barrar a discussão de um modelo de rotulagem frontal foi baseada em um estudo um tanto quanto controverso. Pintava-se um cenário apocalíptico em que empregos seriam perdidos e uma recessão econômica viria varrendo tudo. À época, a consultoria responsável pela pesquisa de opinião não levou em conta uma série de variáveis, como o óbvio deslocamento de consumo para outros tipos de alimentos. O Joio já tratou especificamente dessa balela da indústria aqui e aqui.
A pesquisa recém-publicada, no entanto, prova o contrário do que profetizava a indústria. Dá certo. Dá tão certo que a Anvisa, depois de anos de processo, finalmente aprovou a norma em outubro de 2020, que estabelece regras, ações e prazos para que a indústria brasileira adote a rotulagem frontal.
Contudo, a receita saiu ao gosto das corporações, e teria sido pior se não houvesse participação e pressão das organizações da sociedade civil. O modelo aprovado, com um design retangular com uma lupa, indicando o excesso de sal, açúcar e gordura, não é o mais eficiente para advertir pessoas idosas, crianças e analfabetas, entre outros pontos já muito bem superados pelo modelo chileno.
A norma entra em vigor a partir de outubro deste ano. Resta esperar as cenas dos próximos capítulos.
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