Por enquanto, impostos, mudanças na rotulagem e regulação dos ambientes de compra estão fora da agenda de quase todos os postulantes. Bolsonaro e Ciro nem sequer encontram nas equipes pessoas habilitadas a falar a respeito
Em 2020, um grupo de pesquisadores brasileiros cantou a bola: dali a seis anos, os ultraprocessados – aquelas preparações industrializadas ricas em sal, açúcar, gorduras e aditivos – ficariam mais baratos do que carnes, legumes, verduras e frutas.
Isso coincidiria com o fim do mandato do próximo governo, o que significaria que o eleito teria pela frente uma responsabilidade e tanto. O problema é que tudo mudou. Para pior.
Agora, os mesmos pesquisadores estão atualizando suas projeções. E há boas chances de que a inversão aconteça muito antes do esperado – mais precisamente no segundo semestre de 2022, ápice do período eleitoral.
Então, mais cedo do que tarde, o próximo presidente terá papel central para a consolidação ou reversão de uma tendência que é a prova viva de que o Brasil precisa avançar na regulação dos ultraprocessados.
A nutricionista Laís Amaral é do grupo que faz as projeções. Pesquisadora do programa de alimentação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), ela explica que a regulação dos ultraprocessados envolve um pacote de medidas para tornar esses produtos menos acessíveis, atrativos e disponíveis.
Tributação diferenciada, para desestimular o consumo. Rotulagem frontal obrigatória com alertas sobre altos índices de sódio, açúcar, gorduras e presença de aditivos. Proibição da publicidade. E restrições de acesso, como a interdição da venda em escolas.
“Uma medida vai fortalecendo a outra: essa é a ideia do pacote. Quanto mais medidas conectadas tivermos, maior chance de termos um ambiente alimentar propício a escolhas saudáveis”, resume.
Vários países já adotaram o pacote – e é a América Latina que tem servido de exemplo para o mundo nessa seara.
Em 2014, o México implementou um imposto especial sobre bebidas açucaradas, como refrigerantes, néctares e sucos. O governo passou a cobrar 1 peso mexicano extra para cada litro de produto. De lá para cá, vários estudos publicados em revistas científicas mostraram que a taxação reduziu o consumo dessas bebidas.
A taxa foi criada no governo do conservador Enrique Peña Nieto. A proposta, visando reverter os índices preocupantes de obesidade e diabetes da população mexicana, já estava pronta há algum tempo. Mas a oportunidade de aprová-la surgiu quando o governo enfrentou problemas de caixa.
No começo do governo de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes chegou a defender o chamado “imposto do pecado”, que tributa setores cujos produtos comprovadamente oneram o sistema de saúde. Mas, como em outras questões, logo o Posto Ipiranga ficou com a voz rouca.
Mais recentemente, em 2020, o governo de López Obrador – de esquerda – aprovou uma norma de rotulagem considerada exemplar. Além de alertas para quantidades excessivas de açúcar, sódio, gorduras e calorias nos ultraprocessados, a regra prevê mensagens sobre a presença de aditivos como cafeína e edulcorantes, com recomendações diretas de que esses produtos não sejam consumidos por crianças – foi um aperfeiçoamento do modelo criado no Chile, e implementado a partir de 2016.
“Países como México, Chile, Peru, Uruguai e Argentina têm conseguido fazer avançar esse tipo de regulação focando nos impactos que esses produtos têm para a saúde pública”, explica Laís.
Mas, no Brasil, as coisas estão empacadas. E mesmo o ambiente de disputa política das eleições gerais não parece, até agora, ser motivo para que o assunto saia do limbo por aqui.
O Joio foi atrás dos pré-candidatos à Presidência para saber o que eles pensam a respeito dessa agenda. Enviamos uma enquete simples e direta:
Chile, Peru, Uruguai, Argentina e México aprovaram pacotes de políticas públicas voltados para a regulação dos produtos ultraprocessados (refrigerantes, comida congelada, miojo, salgadinhos de pacote, etc.). Esses pacotes englobam:
- Rotulagem frontal obrigatória com avisos de altos teores de açúcar, sódio e gorduras;
- Aumento nos impostos;
- Restrições ou proibições à publicidade;
- Restrições ou proibições da venda em ambientes institucionais, principalmente escolas.
Se eleita/o, pretende enviar ao Congresso Nacional um pacote de políticas públicas com:
- Todas essas medidas.
- Algumas dessas medidas. (Se sim, quais?)
- Não pretendo entrar nessa agenda.
A quatro meses do pleito, quase nenhuma campanha conseguiu se posicionar.
O ex-presidente Lula (PT) lidera as pesquisas de intenção de votos até agora. Sua assessoria de imprensa afirmou que a campanha não responderia, pois os grupos de trabalho para a formatação do plano de governo ainda não haviam sido constituídos – o que deveria acontecer a partir de “junho e julho”.
Em segundo lugar nas pesquisas está o presidente Jair Bolsonaro (PL). Sua assessoria não recebeu retorno da campanha sobre quem poderia responder à pergunta do Joio.
Essa também foi a justificativa da assessoria de Ciro Gomes (PDT), que disse não ter conseguido encontrar alguém para responder esse tipo de questão.
Já a assessoria de Felipe d´Avila (Novo) disse que o pré-candidato não iria responder.
As campanhas de Simone Tebet (MDB) e José Janones (Avante) ignoraram os múltiplos pedidos da reportagem. E a assessoria de Leo Péricles (UC) prometeu enviar uma resposta, mas parou de responder às mensagens do Joio.
A única campanha que respondeu foi a de Vera Lúcia (PSTU). Através da assessoria, a pré-candidata afirmou que, se eleita, enviaria ao Congresso um pacote com todas as medidas. E acrescentou que isso seria um “primeiro passo”, já que ela e seu partido defendem a expropriação das empresas que fabricam esses produtos.
Os programas de governo são pré-requisito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para o registro das candidaturas a cargos do Executivo. Esse ano, o prazo máximo é 15 de agosto.
O problema só cresce
O desinteresse em responder destoa dos fatos e das evidências disponíveis hoje. Para começo de conversa, o Brasil passa por uma mudança de padrão alimentar em direção a produtos menos e menos saudáveis. Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, a disponibilidade de ultraprocessados na mesa do brasileiro vem crescendo.
A primeira edição da pesquisa em que esse dado está disponível foi feita há 20 anos. Na POF 2002-03, esses produtos correspondiam a 12,6% das calorias disponíveis na nossa alimentação. Na POF 2008-09, esse número passou para 16%. E na última pesquisa, divulgada em 2020 mas com dados coletados em 2017-18, chegou a 18,4%.
Esse avanço ocorreu independente da região do Brasil. E em todas as camadas sociais.
É importante ressaltar que a piora da situação econômica do país pode ter agravado essa situação. Pesquisas realizadas por grupos universitários e organizações da sociedade têm registrado um menor consumo de frutas, legumes e verduras entre a população de baixa renda.
Ainda no campo do diagnóstico do problema, também temos muito mais conhecimento sobre os danos associados ao consumo de ultraprocessados do que tínhamos nas últimas eleições gerais, em 2018.
Na época, já havia evidências científicas associando ultraprocessados a um maior risco de obesidade, diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças crônicas. Nesse período, o volume de estudos com grandes amostras populacionais cresceu de maneira considerável, e em 2019, pela primeira vez, o consumo de ultraprocessados foi associado a um maior risco de morte.
FRANÇA
Amostragem do estudo:
cerca de 44 mil pessoas
↑ 10% o consumo de ultraprocessados
↑ 14% o risco de morte
ESPANHA
Amostragem do estudo:
cerca de 20 mil pessoas
cada porção extra diária
↑ 18% o risco de morte
Também em 2019 foi publicado o primeiro estudo a apontar uma relação de causa e efeito entre o consumo de ultraprocessados e a obesidade.
O Ministério da Saúde realiza um inquérito telefônico com habitantes das capitais chamado Vigitel. Entre 2006 – primeiro ano do levantamento – e 2021, o percentual de pessoas com excesso de peso saltou de 41,3% para 57,2%. E a prevalência de obesidade aumentou de 11,6% para 22,4%.
Uma projeção recente, feita pela Federação Mundial da Obesidade, dá conta de que o Brasil deve ter quase 30% de adultos obesos em 2030.
No Brasil, as doenças crônicas não transmissíveis são responsáveis por cerca de 70% das mortes todos os anos.
É só olhar para o lado
Em comparação com 2018, também temos muito mais medidas regulatórias testadas – e comprovadas – em outros países.
O Chile foi o grande desbravador desses mares ao implantar um revolucionário sistema de rotulagem frontal em 2016.
Antes do Chile, os modelos de rotulagem frontal eram voluntários e baseados em mensagens positivas. Depois do Chile, o mundo viu que a colocação de alertas nos rótulos dos produtos ultraprocessados poderia ser obrigatória para os fabricantes, e com advertências que explicitassem as características negativas dos produtos.
Por lá, houve queda no consumo de ultraprocessados: 36,7% nos produtos com embalagens que avisam que o produto é alto em sódio; 26,7% nos que mostram o sinal alto em açúcar e 23,8% com o alerta de alto em calorias.
E o modelo de rotulagem chileno não prejudicou lucros das corporações de ultraprocessados, tampouco empregos de trabalhadores da indústria, como alardeavam os empresários de lá – e de todos os lugares onde os alertas foram propostos.
“No Chile, o rótulo de advertência deu a letra para a construção de um pacote de medidas regulatórias. Um alimento com o alerta – um octógono preto – não pode ter publicidade infantil, não pode ser vendido em escola, e assim por diante”, explica Laís Amaral, do Idec. Entre outras coisas, esses produtos não podem fazer publicidade na televisão entre 6h e 22h.
O pacote de medidas puxado pela rotulagem foi sendo copiado por vários outros países. O exemplo mais recente vem da Argentina – um país que chegou a fazer dobradinha com as corporações de ultraprocessados para barrar a adoção do pacote nos países do Mercosul.
Em outubro de 2021, debaixo de muita pressão da indústria, o Congresso argentino aprovou a chamada Lei de Promoção da Alimentação Saudável. O texto estabelece um esquema de rotulagem muito parecido com o do México – o que, segundo Laís, coloca os dois países na vanguarda dessa discussão hoje. Também puxa uma série de restrições aos produtos que recebam pelo menos um selo de advertência, como a proibição de fazer publicidade.
O Brasil, mais uma vez, está na contramão da tendência. A única medida regulatória de âmbito nacional aprovada por aqui sem ser contestada judicialmente é a rotulagem. Depois de cinco anos de discussão, a Anvisa aprovou em 2020 um modelo contrário às evidências científicas e melhores práticas: uma simpática lupinha avisando se um produto tem excesso de gorduras saturadas, açúcares adicionados e sódio vai estampar os produtos. Mas sem puxar outras medidas – como a proibição de publicidade ou de venda nas escolas.
Se tudo der certo, a regra passa a valer em outubro deste ano. Segundo Laís, a prioridade é garantir que a implementação não seja adiada. Mas seria excelente se a norma fosse aprimorada, prevendo alertas para aditivos, como Argentina e México fizeram. “Existe margem para conectar com mais medidas. Proibir a publicidade do produto que receber a lupa da Anvisa, por exemplo.”
Quem está no páreo
As eleições de 2022 têm um caráter plebiscitário, com uma polarização entre Lula e Bolsonaro. Se as campanhas nem de um, nem de outro têm posições sobre a adoção do pacote de medidas até agora, dá para olhar para o que eles fizeram – ou tentaram desfazer em seus governos.
Lula foi presidente entre 2003 e 2010, um período em que essa discussão apenas engatinhava. Mas alguns passos foram dados pelo Executivo nessa direção.
A participação da sociedade civil voltou a ser possível com a reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2003. No ano seguinte, partiu de uma conferência popular organizada pelo órgão a ideia de criar uma lei especial para a alimentação. O texto – enviado em 2005 pelo governo ao Congresso, e aprovado por lá em 2006 – define que segurança alimentar não é simplesmente barriga cheia, mas acesso ao alimento bom, barato e saudável.
Em meio ao governo Bolsonaro, quatro países latino-americanos já tinham adotado pacotes de medidas regulatórias. Apesar disso, só um passo foi dado nesse sentido.
Em maio de 2020, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao MEC, editou uma resolução que proíbe a oferta de ultraprocessados para crianças de até três anos, e prevê que, no máximo, 20% dos recursos do PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, podem ser destinados à aquisição de alimentos ultraprocessados e processados – exemplos destes últimos são extrato de tomate e atum enlatado.
A resolução também proíbe expressamente a aquisição de vários tipos de ultraprocessados, como refrigerantes, bolachas recheadas e gelatina.
O texto do FNDE é alinhado ao Guia Alimentar da População Brasileira, um marco nessa história. O guia foi lançado em 2014, no governo da petista Dilma Rousseff. Adota a classificação por grau de processamento, com uma recomendação expressa de que se evite o consumo de ultraprocessados – o que sempre irritou a indústria.
Em setembro de 2020 – quatro meses depois da resolução do FNDE, portanto – o Ministério da Pecuária, Agricultura e Abastecimento (MAPA) requisitou ao Ministério da Saúde a revisão do Guia Alimentar. Organizações que representam Coca-Cola, Unilever, Nestlé, Danone e afins apoiaram a investida. Seja pela repercussão pública, seja pela fundamentação pobre, o pedido não deu em nada. O Guia continua de pé.
O que não continuou de pé, contudo, foi o Consea. Extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi uma tarefa cumprida por Bolsonaro no primeiro dia de governo.
Por outro lado, nem tudo são flores na chapa de Lula. Seu vice é Geraldo Alckmin, que em 2018 disputou o Planalto pelo PSDB. Na época, ele chegou a falar que pretendia retirar impostos sobre “comida processada” no debate da Rede TV!. O contexto não deixava dúvidas: Alckmin estava falando sobre alimentos industrializados.
Foi na última gestão Alckmin em São Paulo que, após denúncias de desvio de dinheiro na compra de alimentos para estudantes, as escolas da rede estadual sofreram cortes na merenda, trocando durante semanas as refeições completas servidas no almoço e na janta por ultraprocessados, como bolachas.
Pouco espaço para o debate
Diferente das últimas eleições gerais, dois temas diretamente relacionados à alimentação estarão na ordem do dia: fome e alta dos alimentos. Mas nem por isso pautar a regulação dos ultraprocessados deve ser tarefa fácil. Na verdade, as fontes ouvidas pelo Joio acreditam que o cenário é ainda mais difícil do que em 2018.
“É o tipo de discussão que tem tudo para ficar abafada por essa necessidade de enfrentar retrocessos”, acredita Renato Barreto, coordenador de advocacy do Idec. Advocacy é a atividade de pressão por avanços legislativos ou em políticas públicas exercida por organizações da sociedade civil.
Essa também é a leitura de Marcello Fragano Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde: “Não vai ter muito espaço para trabalhar ultraprocessados, não.”
Ambos acreditam, no entanto, que há brechas. “Lula falou sobre alimentação saudável em um encontro com representantes de movimentos sociais em fevereiro. Eu acho que o espaço que a gente tem para tentar entrar nesse debate minimamente é por aí. Alimentação saudável pressupõe incentivo aos alimentos in natura e, ao mesmo tempo, desincentivo para ultraprocessados”, explica Marcello.
“Se o debate da insegurança alimentar é bem feito, ele politiza e ajuda. Não são coisas opostas, pelo contrário”, pontua Renato que, no entanto, vê outro obstáculo: “Acho que esse ano vai ser uma discussão muito mais de democracia, e menos de todas essas questões.”
A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, um conjunto de 38 organizações da sociedade civil, vai centrar forças em uma agenda mais enxuta que no pleito de 2018. Na época, foi lançada uma carta com dez propostas, enviada aos candidatos a fim de que eles se comprometessem publicamente com os temas. Naquela carta, pelo menos cinco propostas tinham diretamente a ver com o pacote de medidas dos ultraprocessados.
Para o pleito de 2022, por enquanto, a carta-compromisso terá quatro temas: apoiar a amamentação e a alimentação saudável, garantir o direito à água, apoiar a agricultura familiar e aprovar medidas fiscais que impulsionem a alimentação saudável.
Em 2018, apenas Fernando Haddad (PT), Marina Silva (Rede) e Guilherme Boulos (PSOL) assinaram embaixo.