A indústria alimentar atribui, via de regra, a má alimentação e a obesidade à “livre escolha” das pessoas; alguns países já mostram que não é bem assim
Que sejamos perdoados pela nossa ignorância e por demorar tanto a agir. E que esse perdão venha, principalmente, pelas mãos das gerações futuras, já que as crianças e os adolescentes são as vítimas preferenciais de um algoz da saúde pública: a obesidade causada, em muito, por alimentos ultraprocessados. Um algoz que não vem sozinho. Traz “capangas” como consequências; as doenças crônicas não transmissíveis. Hipertensão, problemas cardíacos, diabetes e câncer. Só no Brasil, já são 8,4% os adolescentes obesos e 25,5% os com excesso de peso. O índice de meninos obesos entre 5 e 9 anos de idade é de assustadores 16,6%. Isso, porque os dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares nem são tão atuais (2008-2009).
Dentre outros males, uma questão é central nessa situação. Existe muito do que não sabemos a respeito da indústria alimentar. Vamos além: transborda a quantidade que as gigantes transnacionais acumulam de informações não reveladas, distorcidas em forma de “conhecimento” manipulado e divulgado como o suprassumo da “verdade científica” na América Latina. Mas até para os gigantes, a roda gira e o cenário vira. Ou começa a virar. Seja por aqui, seja do outro lado do Oceano Atlântico. Em Portugal, por exemplo, alguns tentáculos do enorme polvo já estão amarrados.
O aviso chegou assim, via Facebook: “Poderia ter sido interessante referir-se aos artigos científicos que expõem o comprometimento da Associação Portuguesa dos Nutricionistas (APN) com os patrocínios da indústria alimentar em eventos ditos científicos, que catalisaram, em Portugal, a constatação generalizada do problema, por meio de partilhas na Internet e posterior difusão midiática”. As palavras vinham do português David Millions à reportagem de O joio e o trigo. Tínhamos acabado de publicar uma entrevista com ele, que dirige o site Compreender Nutrição, uma fonte em potencial de argumentos e pesquisas científicas sobre nutrição e alimentação saudável
A entrevista é boa, mas poderia ser mais. Então, vamos tentar nos redimir. David sabia que a Ordem dos Nutricionistas de Portugal, organização ligada historicamente a APN, e responsável pela gestão dos conflitos de interesses nas relações ciência/indústria naquele país, foi alvo de pressão pública após as denúncias de patrocínios duvidosos aceitos pela associação, o que levou à admissão, por parte da presidente da Ordem, Alexandra Bento, de que “um debate profícuo e isento só pode acontecer num ambiente sem patrocínios privados”, em contraste com as declarações da Associação Portuguesa dos Nutricionistas, que, pouco antes, rejeitava a ideia e afirmava não existir interferência das empresas na construção dos conteúdos científicos.
A associação, inclusive, realizou, em maio de 2017, o 16° Congresso de Nutrição e Alimentação, em que recebeu explícito patrocínio de megaempresas de “comida lixo”. Nestlé e Coca-Cola estavam entre os financiadores. Eram os mesmos mês e ano em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgava pesquisa apontando os adolescentes portugueses em quinto lugar entre os mais obesos da Europa, atrás apenas de Grécia, Macedônia, Eslovênia e Croácia.
Em 2016, outro estudo da OMS, o Health Behaviour in School-aged Children, já indicava que os jovens lusitanos tinham severas críticas à qualidade da alimentação das cantinas escolares. Os representantes da APN parecem não ter lido a pesquisa, visto que a associação admitiu até o McDonalds como patrocinador da 15ª edição do evento.
Com o debate público quanto às posições da associação, a Ordem dos Nutricionistas decidiu organizar um congresso que “não teve quaisquer patrocínios da indústria alimentar”, realizado nos dias 21 e 22 de novembro do ano passado, na cidade lusitana de Belém, onde foram reunidos, de acordo com Alexandra Bento, “grandes especialistas nacionais e internacionais”, muitos que “não falam em congressos que tenham marcas associadas”.
A presidente da Ordem, ou bastonária, como é denominada em solo português, vangloriou-se da articulação de um megaevento de nutrição livre de patrocínios da indústria e afirmou que o congresso foi o “primeiro em todo o mundo” (com uma só entidade nacional organizadora) a conseguir tal feito. “Participaram 500 pessoas, entre pesquisadores, médicos e nutricionistas nacionais e internacionais para debater questões como a saúde pública moderna, os conflitos entre a nutrição, a saúde e o setor alimentar, as atualidades em nutrição clínica, as reformas no Sistema Nacional de Saúde e os caminhos do mercado de trabalho da área”, garantiu. No entanto, Alexandra foi econômica nas palavras sobre o clamor popular e a pressão sofrida a partir de organizações da sociedade civil para que se chegasse a esse ponto.
A Ordem se viu obrigada a demonstrar que podia custear a organização, contando com o dinheiro das inscrições e uma verba própria. Não fez nada demais, na realidade. Afinal, a instituição existe por delegação de competências da Assembleia da República Portuguesa (o equivalente à Câmara dos Deputados por aqui) e para “auxiliar o Estado na definição das políticas alimentares”.
Contudo, apesar de aberto o importante precedente, ainda não existe por lá um código de conduta nacional dos nutricionistas que afaste a possibilidade de patrocínios das corporações de alimentos em outros eventos, como os organizados pela APN.
Avanços
Além dessa sinalização sobre os patrocínios, Portugal tem – desde 2016 – um imposto específico sobre as bebidas açucaradas. De acordo com pesquisas do Ministério da Saúde, a medida fez com que os portugueses ingerissem menos 4.225 mil de toneladas de açúcar no último ano em comparação aos 365 dias anteriores. Os primeiros resultados indicam que os cidadãos passaram a optar por itens menos adoçados na hora de matar a sede. Em 2017, o governo estimou arrecadar 80 milhões de euros com o tributo.
Recentemente, outra norma vetou a venda de salgados e doces nas cafeterias, lanchonetes e restaurantes do Serviço Nacional de Saúde Pública. As unidades de saúde do país têm junho deste ano como limite para aderir à regra, que visa à redução do consumo de sal, açúcar e gordura. Segundo o documento do Ministério da Saúde que balizou a condição, os contratos para a concessão de espaços destinados à alimentação nas unidades não podem nem mesmo estampar a publicidade de refrigerantes ou refeições rápidas, com destaque a hambúrgueres, cachorros-quentes, pizzas e lasanhas.
Fora isso, o país também caminhou para a regulação de um conjunto de alimentos prejudiciais à saúde presentes nas máquinas de vendas automatizadas disponíveis em hospitais e outras instituições de saúde, bem como reduziu as quantidades de açúcar distribuídas nos pacotinhos em estabelecimentos comerciais alimentícios.
É possível
Em território latino-americano, a sociedade civil se organiza para agir e debater. A discussão a respeito do conflito de interesses na ciência e na academia, recente nos países da região, passa a ser mais presente. Pesquisadores comprometidos com a saúde pública se posicionam e oferecem saídas. Aliás, já recebem ataques orquestrados por isso.
Quanto ao peso de comer mal, a população, de forma geral, não precisará pedir desculpas. Muito ao contrário. Ela não vai a julgamento. Quem deve se preocupar com a submissão ao juízo público são aqueles que têm voz amplificada e manobram a percepção popular a ponto de culpar exclusivamente os cidadãos pela alimentação ruim, sem citar manipulações científicas e o bombardeio publicitário que interferem na tal “livre escolha”, ainda que cientes dos males que os ultraprocessados causam,. Executivos de alto escalão, políticos, influenciadores digitais, publicitários, cientistas e jornalistas terão do que se desculpar.
Claro que nem todos, mas os que não reconhecem ou não revelam os tentáculos que se estendem pelo mundo e empregam a força dos poderes políticos e econômicos para despejar venenos nos corpos de bilhões de pessoas, esses, sim, terão o que justificar.
Para lembrar
Em 2012, no Rio de Janeiro, aconteceu o World Nutrition – Rio 2012. O congresso contou com a participação de duas mil pessoas e também não teve patrocínio privado, mas foi realizado de forma mais ampla, envolvendo organizações nacionais e internacionais, casos da Associação Mundial de Nutrição em Saúde Pública e Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, com o apoio do Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana de Saúde e Organização Mundial de Saúde no Brasil.
Imagem 1: Google Imagens/livre reprodução
Imagem 2: Compreender Nutrição