“O que é, o que é? De manhã tem quatro patas; de tarde, tem duas; e de noite, tem três?”, dizia a Esfinge aos homens e mulheres em Tebas, segundo consta no mito da Grécia Antiga. A pergunta acompanhava a ameaça “decifra-me ou devoro-te”. Quem resolvesse este enigma conquistaria a glória de se tornar rei da pólis, mas o insucesso tinha um preço: ser morto pelo monstro, uma maldição dos deuses com corpo de leão, asas de águia e rosto de humano.
Hoje, milênios depois, a solução da charada parece óbvia. No entanto, o mito da Esfinge guarda semelhanças com um impasse atual: a situação das grandes empresas de alimentação e bebidas neste início do século 21. “Decifra-me ou devoro-te” é a máxima com que precisam lidar, em um cenário de mudanças no consumo e na agenda regulatória. Cresce o número de evidências científicas mostrando que os ultraprocessados fazem mal, e a indústria tenta responder a isso, como as pessoas em Tebas, para sobreviver.
Não se trata mais de uma lenda. Desde que a classificação NOVA foi cunhada, em 2009, as empresas do setor apostam em diversas frentes para resistir ao maquinário imposto pelas descobertas da ciência. A teoria se tornou o enigma da Esfinge para a indústria de alimentos e bebidas e, usando de mais referências helênicas, acertou-a em cheio no calcanhar de Aquiles.
Formulada pelo médico Carlos Monteiro, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), a classificação NOVA passou a dividir os alimentos conforme o grau e o propósito de processamento e, assim, derrubou uma série de paradigmas sobre alimentação, como o da saudosa pirâmide alimentar.
Os cientistas do Nupens notaram o aumento no consumo de itens industrializados a partir de 1987 na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Produtos como biscoitos, sorvetes, cereais açucarados, preparados com carne, bolos, refrigerantes e sopas, macarrão e temperos instantâneos passaram a tomar, cada vez mais, o lugar de verduras, queijos, ovos, leite, frutas e carnes etc.
Ao mesmo tempo, os pesquisadores perceberam a correlação de maior consumo de itens industrializados com o crescimento de pelo menos 1% ao ano desde 2006 nos casos de obesidade no Brasil —a porcentagem seria equivalente a quase 1 milhão de novos obesos anualmente. Essa medição foi aferida pelo sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissíveis (Vigitel) do Ministério da Saúde. Enquanto isso, dados semelhantes, sobre aumento de fatores de risco, como a obesidade, e do consumo de alimentos industrializados, apareciam em outros países.
A ocorrência simultânea de tantos eventos indicou um fator em comum: os alimentos e bebidas de origem industrial. No entanto, estes não eram todos iguais. De um lado estavam alimentos minimamente processados: arroz, feijão, farinhas. No meio, os processados, tradicionalmente consumidos, como macarrão, geleia e comidas em conserva. Na outra ponta, os ultraprocessados: com altas quantidades de sal, gorduras e açúcares, feitos com técnicas complexas, misturados com aditivos para disfarçar aparência, textura e sabor.
Mais recentemente novos estudos mostraram que o consumo de ultraprocessados está associado a impactos ambientais e, ainda, ao ganho de peso. Além disso, relaciona-se com o desenvolvimento de fatores risco à saúde e o aumento da chance de morte precoce.
As descobertas que culminaram na formulação da classificação NOVA, enfim, serviram para orientar políticas que miram nos ultraprocessados como as setas de Eros — ou seja, na mosca. Exemplos são o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, ou os selos de alerta na rotulagem de alimentos. A nova teoria fomentou as discussões sobre comer bem ou comer mal. Alimentar-se de forma adequada e saudável talvez nunca tenha sido uma preocupação tão pública e contemporânea.
Mesmo que por linhas tortas, as empresas de alimentos e bebidas perceberam essa tendência. Com o consumo dos produtos ameaçados, no Brasil investiram em acordos governamentais para redução de gorduras, em 2008, de sal, em 2011, e de açúcar, no ano passado, tentando atenuar o que há de prejudicial. Com metas frágeis e excluindo os campeões de vendas, essas iniciativas, contudo, são doces para a indústria e amargas para a sociedade. Estão aquém de tocar no âmago do problema, como já mostramos no Joio.
Essas investidas, apesar de não satisfazerem a Esfinge, ao menos a deixam distraída. As corporações vêm diversificando estratégias, muitas delas com o objetivo de atualizar as suas iniciativas em marketing. Isto quem disse é o presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), João Dornellas. “O consumidor hoje tem muito mais informação e busca informação de modo diferente.”
“A indústria tem que descobrir formas de falar também com as pessoas que podem ajudar o consumidor a tomar decisões corretas em função do nosso produto”, ele declarou durante o fórum da Fispal Tecnologia, realizada no final de junho, no Expo Imigrantes, em São Paulo. Essa é uma das mais importantes feiras de tecnologia de alimentos e bebidas do Brasil. Também é um dos espaços em que os cabeças das empresas se reúnem para discutir e compartilhar iniciativas e problemas em comum.
Em busca das respostas
Foi em um dos fóruns da Fispal Tecnologia que executivos das empresas se reuniram para procurar uma solução para o enigma. “A nutrição evolui com o tempo. Isso faz com que a gente esteja vendo novas tendências de consumo de alimentos”, reconheceu, na ocasião, Flávio de Souza, presidente do conselho diretor da Abia e vice-presidente de Assuntos Jurídicos, de Compliance, Assuntos Institucionais e Relações Governamentais da Nestlé no Brasil. Ele é um dos que tentam decifrar a questão deixada pela classificação NOVA.
O executivo evitou ser categórico, mas, ciente do mundo atual ultraconectado, afirmou que a resposta da charada pode estar na comunicação. “Inovação, para nós, como indústria, não tem a ver só com o que a gente faz com pesquisa e desenvolvimento ou em termos de novas tecnologias. O futuro passa em como vou me comunicar com o consumidor, e hoje nós não estamos fazendo isso.”
Para entender o que se passa, os cabeças da indústria têm uma nova denominação para os consumidores. Recentemente, falava-se em consumidor 2.0, depois 3.0, mas agora estaríamos, segundo eles, nas 5 mil cilindradas. A novidade seria o consumidor 5.0, que não só interage com as marcas, mas também se informa a respeito, procurando ética, transparência e sustentabilidade nos produtos delas. (Em tempo, as reportagens de nossa editoria de conflito de interesses mostram que esta tarefa é um tanto quanto difícil).
“A gente já tem o consumidor 5.0, que está muito preocupado em ter mais transparência, ter mais informação e a consumir mais, sim, mas ele quer consumir com mais informação”, detalhou a diretora de marketing da Tetrapak, Vivian Leite, na ocasião.
Complicado, né? A diretora de sustentabilidade da Coca-Cola, Andrea Mota, trouxe um exemplo, na feira, que ajuda a entender. A megacorporação de refrigerantes pretendia lançar uma bebida para atingir as necessidades deste admirável mundo novo. Para isso, queria reunir em uma mesma mercadoria conveniência, saúde, sustentabilidade e sabor, o mais importante segundo os critérios da empresa. “O consumidor não está disposto a abrir mão de sabor por um produto que seja mais natural ou com menos ingredientes”, afirmou a executiva. “Sinta o sabor”, para quem não lembra, é o slogan mais recente da Coca-Cola.
Pois bem, as pesquisas da corporação perceberam que o produto deveria ter alta concentração de frutas, não ter nenhum tipo de aditivo ou estabilizante nem adição de açúcar, pois seria adoçado com as frutas. Além disso, deveria vir em uma embalagem transparente, de fácil visualização para os compradores. “Uma equação praticamente impossível”, segundo Mota. O resultado final entregou um líquido bifásico, que complica a comunicação da empresa que se acostumou a vender em propagandas um mundo de felicidade, onde tudo é limpo e bonito após abrir uma garrafa de refrigerante.
Para ser vendável, o suco deveria informar por que é tão diferente. “A gente, que é da indústria, como encara isso do ponto de vista da comunicação?”, perguntou Mota. A resposta: a embalagem explica que é necessário agitar o líquido. “Significa que o produto é sem estabilizante, e eu escolhi colocar em uma garrafa transparente. São questões que talvez há dez anos a gente talvez não tivesse que lidar e hoje se depara”, acrescentou. A empresa precisa agora dizer que, palavras dela, “aquele produto, apesar de não conter açúcar, é gostoso”.
Resta evidente que, para atingir as exigências do público 5.0, como a Coca quis, vencer a disputa sobre o modelo de rotulagem de alimentos e bebidas a ser adotado é fundamental. “A indústria está sempre procurando dizer as necessidades do consumidor. Nós estamos há muito tempo trabalhando nisso”, afirmou Roberto Macêdo, um dos presidentes da Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados (Abimapi), durante a Fispal Tecnologia.
“Estamos trabalhando em um rótulo nutricional, com 20 associações, para informar melhor ao consumidor”, ele acrescentou. O executivo se referia à Rede Rotulagem, um compêndio de 22 sindicatos que defende a adoção de alertas para a rotulagem com um semáforo que indica as cores verde (baixo), amarelo (médio) e vermelho (alto) para os níveis de açúcar, gorduras e sal. Este modelo é uma tentativa de drible da indústria no sistema rival, com polígonos pretos, bem sucedido desde que foi adotado de forma pioneira pelo Chile — e é o mesmo para o qual se inclina a agenda regulatória aqui no Brasil.
Nas palavras de outro representante das corporações, o vice-presidente de sustentabilidade da Ambev, Rodrigo Figueiredo, o rótulo é uma das principais formas de comunicação das empresas com o consumidor. “Acho que as partes mais técnicas dentro da indústria têm que dar o subsídio, e o time de marketing junto com as marcas deve levar essa informação da maneira que eles sabem fazer”, declarou.
“Vamos imaginar um consumidor chegando na frente de uma gôndola e pegando um produto, e ele está interessado em conhecer o que tem nele e vê os ingredientes”, complementou Leite, da Tetrapak. “A gente não pode escrever no rótulo tudo o que a gente gostaria? Não. Mas tem que encontrar formas de falar isso. Para que o consumidor possa fazer escolhas de acordo com o que ele acredita.”
Nas discussões sobre os alertas frontais em alimentos, é com o objetivo de “comunicar-se melhor” que a Rede Rotulagem reproduz o discurso de que não existe comida boa ou ruim, contrariando, por sua vez, todas as evidências coletadas que levaram à formulação da classificação NOVA. A indústria repete, com frequência, o bordão de que é necessário se alimentar com equilíbrio, sem, é claro, falar em evitar os itens ultraprocessados.
Para o que faz mal, uma das estratégias tem sido a de reformulação. As empresas estão trabalhando na mudança de ingredientes dos produtos. Isso, em parte, é decorrência dos acordos firmados com o Ministério da Saúde — com os problemas já mencionados. Mas há também uma tentativa de oferecer itens supostamente mais saudáveis. Adição de fibras, vitaminas, grãos integrais, alimentos funcionais… As iniciativas variam, mas, não raro, esbarram em um detalhe: podem não ter boa aparência.
Em uma simples afirmação, Macêdo, da Abimapi, resumiu as dificuldades que as corporações encontram ao reformular seus produtos. “Não tem que ser só gostoso, tem que parecer gostoso. O alimento tem que parecer algo que você já está acostumado a comer.”
Investir no portfólio, então, é outra das saídas que a indústria encontrou, como a Coca-Cola está fazendo, ao aumentar a diversidade de bebidas ou avançar sobre fontes de água, tal qual mostramos na série Pescadores de Águas Turvas. “Eu não acho que seja melhor sem [ultraprocessados], melhor com [ultraprocessados], acho que o melhor é dar todas as opções possíveis. Vai ter hora que você vai precisar de um produto que tenha todos os estabilizantes, conservantes”, declarou a diretora da empresa. “Não dá para a gente ter um suco natural, espremido, como os nutricionistas gostariam o tempo todo. Eu que sou mãe sei disso. É isso que o consumidor está pedindo.”
“O importante é a gente entender que essa polarização que a gente está vivendo já está ficando chata, em todos os aspectos da vida”, complementou Mota, da Coca-Cola. Como está na moda dizer que tudo no Brasil hoje não passa de um grande Fla-Flu, os executivos das empresas aproveitam para fazer o mesmo. “O bonito é a gente parar um pouco de tentar classificar. Basta olhar para cada um de nós, e ver o que a gente faz. Que bom que tem o natural. Que bom que tem o industrializado. Nós, juntos, podemos consumir tudo o que tem de bom por aí”, concluiu.
A resolução do enigma
O que é que de manhã tem quatro patas, de tarde tem duas e de noite tem três? O ser humano. Ele engatinha quando criança, caminha quando é adulto e precisa de uma bengala assim que envelhece.
Édipo foi quem respondeu à questão e derrotou a Esfinge. Príncipe de Corinto, exilado após uma profecia anunciar que mataria o próprio pai e casaria com a mãe, ele não só se tornou rei de Tebas depois de vencer o monstro, como a sua fama em desvendar enigmas se espalhou por toda a Grécia Antiga. Reinou por 15 anos, até precisar, para dar fim a uma peste que atingia a pólis, resolver outro mistério: quem matou Laio, seu antecessor?
O herói fez jus à reputação. No entanto, a resolução do inquérito o conduziu ao destino que os deuses lhe reservaram. A história é conhecida, mas atenção para o spoiler. Ele não nascera em Corinto, onde o adotaram, mas em Tebas, de onde fora expulso após ser concebido pelos reis da cidade. Foi Édipo quem matou Laio, seu pai biológico, para, uma vez coroado, casar com a mãe, Jocasta. Ciente dos crimes de assassinato e incesto, ele aceitou a pena que prometera ao culpado: cegou seus olhos e partiu para o exílio.
A resolução do enigma da Esfinge levou Édipo à trágica verdade de sua condição. A semelhança com a indústria de ultraprocessados pode não ser só coincidência.