Agência sugere que empresas tenham prazo longo para adaptação depois da aprovação de uma resolução
A diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou hoje (12) a abertura de consulta pública sobre a adoção de um modelo de rotulagem frontal de alimentos. A ideia é criar um sistema de sinais que ajude a população a saber sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas em produtos industrializados.
A Gerência Geral de Alimentos da Anvisa propõe um modelo igual ao está sendo adotado no Canadá. A decisão deixa de fora a sugestão da sociedade civil, de um sistema próximo ao que foi adotado no Chile em 2016, em forma de alertas. E, de outro lado, exclui o semáforo proposto pela indústria.
No geral, é esse o tom da decisão da agência: nem o que organizações da sociedade cobravam, nem o que as empresas cobravam. A efetividade ou a inutilidade da norma dependerá dos passos a serem dados nos próximos meses.
Uma consulta pública deve ser aberta em breve, com prazo de 45 dias para contribuições. Depois, as sugestões serão consolidadas e será redigida uma proposta final, que ainda precisa passar pela diretoria. Uma decisão sairá apenas no próximo ano.
A Anvisa propõe um prazo longo para adaptação das empresas – no total, três anos e meio a partir da aprovação de uma resolução. E um perfil de nutrientes escalonado em duas fases: na primeira, mais brando; na segunda, mais rigoroso, mas ainda aquém do que havia sugerido a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, coalizão de ONGs e pesquisadores que defende um sistema de advertências nos moldes do que foi criado no Chile.
“A gente discutiu muito o caráter da norma para que preservasse a possibilidade de escolha do consumidor, para que fosse mais claro”, defendeu a gerente-geral de Alimentos, Thalita Antony de Souza Lima.
Na mesma linha, foi a diretora responsável por relatar esse processo, Alessandra Soares. “O nosso objetivo maior é tornar claro ao cidadão a informação para que a decisão da escolha do alimento seja dele. E com a maior certeza possível do que está consumindo. É isso que a gente quer que ele entenda. Que ele olhe para o rótulo e entenda o que está consumindo.”
O que muda de fato
Além de um sistema frontal para nutrientes em excesso, a tabela de informação nutricional passará por mudanças. A partir da publicação das normas será necessário informar sobre a presença de açúcares, discriminando entre açúcares naturalmente presentes e aqueles que foram adicionados.
Além disso, as tabelas terão de conter as informações nutricionais por 100 gramas ou 100 ml. Na visão da agência, isso facilita a comparação entre produtos. Mas as porções definidas pela própria indústria continuam presentes, ou seja, agora haverá mais um campo de informação.
Outra mudança diz respeito às alegações, ou seja, àquelas mensagens que tentam dizer que um produto é tudo de bom: vitaminas, minerais, redução de sódio ou de açúcar etc. Inicialmente, a Gerência-Geral de Alimentos aventou a hipótese de proibir essas mensagens em qualquer produto que tivesse nutrientes “Alto em”.
Mas houve um recuo. A proposta agora é de que a alegação proibida diga respeito apenas ao nutriente em excesso. Ou seja, um salgadinho não poderá dizer que reduziu o teor de sódio, mas poderá propagandear que tem vitaminas e minerais importantes para o crescimento saudável. Um biscoito com selo de “Alto em” açúcar não poderá ser “light”, mas poderá apresentar mensagens do tipo “Baixo em gorduras saturadas”. Nesse caso, a única restrição é que a mensagem não seja colocada na parte superior da embalagem, onde deve ficar o sistema de rotulagem obrigatório.
Ana Maria Martins, assessora em advocacy da ACT Promoção da Saúde, organização que integra a Aliança, concentrou as queixas em duas questões. “A gente precisa reiterar dois pontos que a gente considera importante: prazos e edulcorantes. Assim como a diretora falou, a colocação dos selos visa oferecer aos consumidores informações para que façam escolhas alimentares mais saudáveis.” Então, na visão dela, avisar sobre a presença de edulcorantes é importante para encorajar escolhas, de fato, saudáveis. Voltaremos a esse ponto adiante.
Lentidão tem preço
Ana Paula Bortoletto, líder do programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), considera que a agência deu um passo importante ao conseguir abrir consulta pública em meio a uma conjuntura política instável. “É um avanço em relação a medidas que apoiem o consumidor a fazer escolhas mais saudáveis, numa lógica de enfatizar o ambiente alimentar e de não culpar o indivíduo.”
Durante a consulta pública, o Idec e as organizações da Aliança devem apresentar sugestões sobre algumas questões. Uma das principais preocupações é o prazo para implementação. “Não faz sentido ter um prazo tão longo para uma mudança que pode ser facilmente implementada pela indústria”, adverte Ana Paula.
Já a gerente-geral de Alimentos da agência entende que “esse prazo é importante para que as empresas entendam e se ajustem às novas regras”. No Chile, no Peru e no Uruguai, os três países que adotaram alertas nos rótulos, os prazos foram bem mais curtos – em geral, após doze meses ao menos parte da medida já estava em implementação. O Canadá, que parece ter inspirado a agência em mais de uma questão, jogou com um prazo mais dilatado.
Em termos de saúde pública, um prazo muito longo significa perder a oportunidade de salvar vidas. Entre aprovar uma resolução, começar a implementar e avaliar, facilmente passa-se uma década. Isso diante de um problema emergencial, já que doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão e câncer, são a principal causa de morte no Brasil.
A expectativa é de que novos produtos comecem a cumprir com as normas apenas doze meses após a publicação da resolução final. Aqueles que já estão no mercado terão dois anos e meio. E só depois de três anos e meio entrará em vigor o perfil de nutrientes mais rigoroso. Ou seja, estamos falando de 2023, numa perspectiva otimista, para que a medida seja de fato cumprida.
Além disso, pode-se estimular um processo de reformulação perigoso. As propostas da sociedade civil para a adoção de selos para gorduras em geral e para adoçantes foram recusadas logo de cara.
Com isso, há a possibilidade de que as empresas promovam uma troca massiva de açúcar por adoçantes, evitando alertas nos produtos. Adoçantes são substâncias controversas e não sabemos qual seria o resultado de uma exposição massiva ao longo de décadas.
O espírito geral
O prazo dilatado dá às empresas a chance de reformular produtos de modo a que cumpram minimamente com as exigências. As discussões na Anvisa tiveram início em 2014 e, de lá para cá, esse processo de reformulação tem se acelerado, já à espera da norma definitiva.
O que pode acontecer é que daqui a três anos pouquíssimos produtos recebam algum selo e aí a medida passa a ter efeito contrário: legitima produtos sem selos que estão longe de ser saudáveis.
o presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas, vê a questão desde outro ponto de vista e se queixou do perfil de nutrientes adotado. “Perfil muito restritivo que pode impactar categorias inteiras de produtos e fazer com que quase a totalidade dos produtos tenha a lupa. O que não é efetivo para o consumidor fazer escolhas.”
Esse é o espírito geral da discussão. Já em 2017 estava claro que havia duas linhas de raciocínio sobre a mesa. A agência queria estimular a população a evitar ultraprocessados, como preconiza o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde? Ou fazer com que as pessoas promovessem escolhas entre o ruim e o menos ruim? A decisão de hoje continua a deixar em aberto essa questão.
No caminho do meio
Em termos de design, a agência tinha três caminhos possíveis:
1. Adotar o modelo de semáforo, a favor do qual não havia nenhuma evidência científica independente. Então, fechar com esse sistema seria uma decisão difícil de justificar por parte de uma agência que deve tomar em conta a ciência
2. Adotar o triângulo sugerido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), inspirado no octógono criado pelo Chile em 2016
3. Ou criar um modelo alternativo que não violasse as evidências, mas, também, não desagradasse de todo os fabricantes de comida-porcaria. Foi esse que prevaleceu.
Não por acaso, o presidente-executivo da Abia considerou haver ocorrido uma “evolução” com a adoção do sistema canadense.
Ana Paula, do Idec, entende que a ideia geral da Anvisa de destacar o nutriente negativo é importante. “Mas o formato proposto não é uma advertência em si. Você não consegue replicar a ideia de risco, de advertência.”
A ouvidora da Anvisa, Daniela Lobato, felicitou a agência pelo processo e recordou que essa decisão é importante pelo fato de o Brasil ter uma parcela alta de analfabetos funcionais. Portanto, pessoas que têm dificuldade em interpretar rótulos e, mais que nada, tabelas de informação nutricional cheias de letrinhas, números e termos técnicos.
Não se sabe se as pesquisas da Embrapa e da UnB mencionadas pela gerente-geral de Alimentos testaram a percepção dos diferentes modelos de acordo com o grau de escolaridade. Em tese, o modelo como proposto pela sociedade, com um alerta para cada nutriente em excesso, permitiria a um analfabeto se guiar pelo número de alertas na hora de promover uma escolha.
Agora, com o sistema canadense escolhido, a pessoa precisa parar para ler o rótulo e comparar produtos. Como a própria Anvisa mostrou, há sete combinações diferentes de nutrientes. Diante de um produto com excesso de açúcar e outro com excesso de gorduras, o que você faz? Numa situação real de compra, você pode se ver forçado a comparar entre vários produtos, com várias combinações diferentes. As evidências científicas mostram que as escolhas na frente da prateleira são feitas em questão de segundos, então, essa pode ser mais uma fragilidade da proposta da agência.
Enquanto o sistema do Canadá ainda não foi implementado, o chileno já leva três anos de vida. Nesse período, foram produzidas algumas pesquisas científicas mostrando que houve uma redução no consumo de sal, gordura e açúcar a partir de produtos processados e ultraprocessados.
A Anvisa diz haver a favor do modelo canadense pesquisas produzidas pela Embrapa, empresa pública ligada ao Ministério da Agricultura, e pela Universidade de Brasília. Os resultados, porém, ainda não estão publicados. A gerente-geral de Alimentos limitou-se a dizer que esse sistema se saiu melhor que o semáforo da indústria, mas não explicou se foi feita comparação com os alertas defendidos pela coalizão da sociedade civil. Pedimos os estudos à agência.