Males relacionados à falta de atenção primária lideram os óbitos globais, e entidades da sociedade civil alertam para a omissão dos governos sobre esse problema
“Um fracasso global.” Assim é como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades sanitárias mundiais classificam as estatísticas, atualizadas este mês, que indicam que 7 entre as 10 principais causas de óbitos são doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Os números fazem parte das Estimativas Globais de Saúde divulgadas pela OMS. A entidade listou os motivos de 55,4 milhões de mortes em todos os países em 2019 — os 10 primeiros correspondem a 55% do total.
A lista, como corresponde ao ano que já passou, desconsidera as mortes causadas pela Covid-19, a doença provocada pelo coronavírus responsável pela pandemia em curso no planeta, o Sars-Cov-2.
A predominância de óbitos ligados a condições crônicas, apesar disso, reforça a percepção de que existe relação entre a alta letalidade do patógeno e o quadro de saúde mundial, caracterizando uma sindemia. Esta palavra denota uma situação em que dois ou mais males interagem, produzindo danos maiores do que a simples somatória deles. Como já falamos aqui —e vem sendo largamente demonstrado—, as DCNTs estão relacionadas aos quadros mais graves e à maior fatalidade da Covid-19.
Doença arterial coronariana (16% do total), derrame cerebral (11%) e doença pulmonar obstrutiva crônica (6%), ligadas a enfermidades crônicas, compõem o pódio das circunstâncias mortais do ano passado. Elas estavam à frente das infecções do baixo trato respiratório, das condições neonatais, dos cânceres de traqueia, brônquios e pulmões e das doenças de Alzheimer e outras demências, no pelotão do meio. Diarreias, diabetes mellitus e quadros renais crônicos fecham a lista.
Ao divulgar o ranking, a OMS assinalou que há uma mudança no perfil das maiores causas de mortes nas últimas duas décadas. Algumas doenças infecciosas caíram significativamente no período analisado, como é o caso da Aids, que vitimou 1,4 milhões de pessoas em 2000 e 679 mil em 2019. Enquanto isso, as condições crônicas aumentaram de letalidade no mesmo período. Juntas, todas as doenças não transmissíveis responderam a quase três quartos (74%) do total de mortes no ano que passou.
As enfermidades que afetam o coração continuam como líderes globais do ranking de morbidade, crescendo em mais de 2 milhões óbitos, para 8,9 milhões, na comparação entre as estimativas do fim das últimas duas décadas. Mas ganharam a companhia de outras quatro DCNTs, que deram um salto no número de vidas ceifadas. O mal de Alzheimer teve a maior alta, subindo de 584 mil mortes para 1,6 milhão. Além dele, a diabetes também tem destaque, indo de 878 mil vítimas para 1,5 milhão.
Falta de ações governamentais
“Essas novas estimativas são outra lembrança de que precisamos avançar rapidamente na prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças não-comunicáveis”, afirmou o diretor-geral da OMS, o pesquisador Tedros Adhanom. Ele argumentou que os países precisam investir nos sistemas públicos de saúde e implementar políticas públicas que ajudem a mitigar o desenvolvimento das condições crônicas.
“[As estimativas] evidenciam a urgência de melhorar drasticamente a atenção primária de forma igualitária e abrangente. Um atendimento de saúde primário fortalecido é claramente a base sobre a qual tudo se fundamenta, desde o combate a doenças não transmissíveis até o gerenciamento de uma pandemia global”, acrescentou o diretor da OMS, em um comunicado voltado para a imprensa.
Aqui no Joio já mencionamos algumas ações importantes para combater o avanço das DCNTs. Algumas são, inclusive, recomendadas pela própria OMS. A taxação de refrigerantes e demais bebidas adoçadas para frear o consumo exagerado de açúcar, relacionado a diferentes males, é um exemplo. Além dele, há os alertas nas embalagens de alimentos, regras sobre gôndolas de supermercados, entre outros programas que podem contribuir para melhorar a saúde da população em geral.
A ausência ou pouca ênfase na adoção de tais medidas, no entanto, fez com que representantes da sociedade civil considerassem as estimativas da OMS “um fracasso coletivo dos governos”. Foi assim que a diretora-geral da NCD Alliance, a pesquisadora britânica Katie Dain, classificou os dados sobre mortalidade. Ela citou o aumento da diabetes como um caso da falta de ações governamentais: “É uma ilustração trágica desse fracasso e claramente insustentável no futuro”.
A NCD Alliance (equivalente a Aliança contra DCNTs, em português) é uma representante global de uma rede de organizações civis cuja principal pauta é a saúde pública. Em um comunicado à imprensa, a diretora da entidade cobrou a implementação de mais políticas contra os males crônicos.
“Se os governos levarem a sério a prevenção de mortes evitáveis em grande escala e uma melhor preparação do mundo para futuras pandemias, eles precisam investir na saúde de seus cidadãos e promover ambientes saudáveis, combatendo os fatores de risco comuns —álcool, tabaco, falta de atividade física, dietas não saudáveis e poluição do ar— e garantindo que todos que precisam tenham acesso a diagnósticos, tratamentos e cuidados essenciais e que salvam vidas”, afirmou Dain.
E o Brasil nisso?
As estimativas da OMS também mostram as causas de morte em quatro grupos de países de acordo com a faixa de renda estimada pelo Banco Mundial. O Brasil se encontra no segundo pelotão, entre aqueles com renda média-alta. Entre as nações que se enquadram nesse conjunto, os três principais motivos de óbito são iguais ao ranking global —coração, derrame e pulmões. No entanto, há uma incidência maior de DCNTs, que respondem a 8 das 10 principais causas.
Os números vão ao encontro do que os indicadores constatam por aqui. Segundo as informações mais recentes do Ministério da Saúde, de 2017, as doenças não transmissíveis apresentaram uma taxa de 172,4 mortes a cada 100 mil habitantes, um patamar bem superior às provocadas por doenças infecciosas (36,1 a cada 100 mil) e causas externas (77,6 a cada 100 mil).
Tais achados não são sem motivos. O país vem imprimindo um ritmo mais lento do que deveria nas ações de combate aos males crônicos. Enquanto a mortalidade por DCNTs é líder, fatores de risco para o desenvolvimento dessas enfermidades estão em crescimento no país. Um deles é o ganho de peso pela população. De acordo com a última edição da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE, mais de um quarto dos brasileiros adultos (26,8%) estava obeso e 60,3% tinha sobrepeso em 2019.
As doenças crônicas levam vidas, muitas mais precocemente do que deveriam. E devem ceifar mais, considerados os (desastrosos) desdobramentos do combate à pandemia do coronavírus por aqui. O problema está tão fora da agenda das autoridades políticas que, como já mostramos, um protocolo de atendimento para pessoas com DCNTs infectadas por Covid-19 levou nove meses para ser publicado pelo Ministério da Saúde. Fracasso global e local.