O açaí, uma commodity?

Pesquisador reúne evidências sobre o processo de equiparação de um tradicional fruto do Norte do Brasil com produtos como açúcar, milho, palma e soja

Nos idos dos anos 1990, um empresário paulista se deparou com uma pequena fruta saborosa de coloração escura, mas exótica aos olhos de um empreendedor industrial do Sudeste do Brasil. Esse encontro, no entanto, não se limitaria à interação de dois universos pitorescos distintos. Seria, na verdade, o marco de um processo atualmente em curso e que está transformando o açaí, um dos mais tradicionais alimentos da porção Norte do país.

Do contato do empresário com o fruto, surgiu, em hora e local oportunos, uma ideia que mudaria para sempre um elemento da cultura alimentar nortista. Ele decidiu fabricar sorvetes, misturando-os com creme da fruta, e vendê-los pelas praias dos Estados do Sudeste. Daí em diante, foi questão de tempo até aquele mix ganhar paladares sedentos por novidades e se tornar um ícone dos sabores de sucos, granolas e comidas geladas pelo Brasil.

Essa história, reduzida aqui a uma pequena sinopse, é apenas um dos elementos que o pesquisador Rafael Fonseca, do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (Fomeri) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), levantou, em sua dissertação de mestrado, para mostrar que o açaí está em vias de se tornar uma commodity agrícola, como são hoje o açúcar, o milho, a palma e a soja.

Para que a pequena fruta escura tomasse esse rumo, no entanto, não bastou uma decisão com ares disruptivos vinda de um pequeno-burguês paulista. Fonseca afirma que o empresário em questão tinha um contexto mais do que favorável para o desenvolvimento da sua ideia — e é aí que está o pulo do gato.

“Sob um olhar da geopolítica”, diz o pesquisador, um internacionalista, “desde a década de 1980 vivemos, sob o neoliberalismo, um regime agroindustrial corporativo, no qual empresas multinacionais começam a controlar cada vez mais a distribuição de alimentos. Nessa época, os países do Sul global começaram a exportar mais frutas, tanto para atender o mercado interno quanto para a exportação”.

Entre as frutas que passaram de alimento cultural para item de desejo em outras regiões do Brasil e do mundo estava, justamente, o açaí. 

Fonseca concedeu uma entrevista para O Joio e O Trigo sobre esse processo, tema da sua pesquisa, intitulada “O regime agroalimentar corporativo: questionamentos sobre a materialização do açaí ultraprocessado no século XXI”.

Na dissertação, ele investiga como o fruto está se tornando uma commodity, resultado de um cultivo extensivamente produzido para exportação, com o objetivo principal de alimentar a indústria que o utiliza para fabricar outras mercadorias — e vale dizer: boa parte delas, alimentos ultraprocessados. Para visualizar esse decurso, o pesquisador afirma que há duas principais evidências.

“Primeiro, é a transformação na forma de cultivar”, explica. “Se naturalmente o açaí crescia na beira dos rios, hoje em dia a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) trabalha com sementes modificadas para poder plantá-lo em fazendas. Antes, ele era uma cultura extrativa. E agora vem sendo produzido como se fosse um grande monocultivo, com a mecanização da colheita cada vez mais discutida.”

O pesquisador se refere ao melhoramento genético do fruto desempenhado pela Embrapa, que é a empresa pública brasileira de inovações sobre a atividade econômica rural. Recentemente, a companhia concluiu o desenvolvimento de um tipo de semente que facilita a plantação de açaí em grandes extensões de terra e oferece ganhos maiores. A variedade obtida, a BRS Pai d’Égua, é, segundo a empresa, 50% mais produtiva e rende até 30% do que as espécies tradicionais.

Disputa fundiária

A entrada em cena de um dos grandes atores da pesquisa e do desenvolvimento agropecuários nacionais reforça, de acordo com o pesquisador, os indícios da integração do cultivo do açaí com um complexo agroindustrial, semelhante ao que acontece em outras cadeias de matérias-primas agrícolas.

Além disso, a inserção nas linhas das grandes indústrias indica, segundo ele, a entrada do ciclo produtivo do açaí no mercado financeiro, tal qual ocorre com a soja e o milho, entre outros itens negociados na bolsa de valores. Mas atenção aqui: isso não significa que o açaí já é parte do jogo de especulação de preços. O que Fonseca mostra é que ele está quase lá, uma vez que boa parte das empresas que manufaturam o fruto —da porteira das fazendas para fora— está sendo comprada por fundos de investimento.

Da porteira para dentro, a busca por terras para plantations de açaí provoca —assim como no caso da cana-de-açúcar, do milho, da palma e da soja— disputas fundiárias, um problema mais do que comum nas atividades do agronegócio

Fonseca cita, para ilustrar no seu estudo, que o Pará é não só uma das porções do Brasil onde mais se produz açaí, mas também é uma das localidades em que mais há conflitos por grilagem de terras. A dissertação apresenta dados que dão conta de que há mais terras registradas do que a área total do Estado, indicando que existem regiões em que uma ou mais pessoas reivindicam posse da mesma propriedade: são 495 milhões de hectares registrados, o que corresponde a um total quatro vezes superior à área total do Pará.

“A principal conclusão que a pesquisa traz é apontar que não necessariamente uma commodity precisa estar vinculada à bolsa para ser considerada uma commodity”, comenta Fonseca na entrevista para este repórter. “Para um cultivo entrar na trajetória de comoditização e financeirização, ele precisa especular terras. A partir do momento em que precisa de mais terras para produzir o fruto, passa a disputar essas mesmas terras”, completa.

A segunda grande evidência sobre a transformação do açaí em commodity é o trato do Estado brasileiro para com o fruto. O interesse da Embrapa no cultivo já é um indício, mas não é o único nem o mais explícito. Em 2016, o então governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), publicou um decreto criando incentivos fiscais para a exploração industrial, com a condição de que as indústrias se comprometessem a desenvolver pelo menos três novas linhas de produtos a partir da polpa do fruto.

Segundo Fonseca, a medida tomada por Jatene foi um importante passo para consolidar a inserção definitiva do açaí em dois setores da indústria: o processamento de alimentos, para a fabricação de ultraprocessados como os mix, sorvetes e sucos; e o mercado de cosméticos, cujo maior expoente é a multinacional brasileira Natura.

“Esse processo de inserção na indústria está acontecendo hoje e está em constante expansão. Cada vez mais as empresas estão criando encontros para discutir produtos e pensar em maneiras sobre a industrialização do açaí”, diz o pesquisador.

Cultura e saúde

Em que pese o fato de o fruto ter se popularizado como um alimento ultraprocessado, Fonseca recorda que o açaí é, antes de tudo, parte da cultura alimentar do Norte do Brasil. Enquanto em regiões como a Sudeste ele é servido na forma de sorvetes, misturados não raro a leite condensado, achocolatados, doces e outras porcarias, o açaí é consumido no seu berço como um alimento in natura ou similar. 

“No Norte, come-se o açaí como um alimento básico, minimamente processado, como o arroz. Ele compõe a dieta cotidiana das pessoas, ao lado das farinhas e do peixe”, lembra o pesquisador. “Ao mesmo tempo em que, na Amazônia, é consumido mais do que o leite, em outras regiões ele é exportado como produto químico.”

E complementa: “Uma parte do complexo industrial pode considerar o fruto uma commodity, como a palma, o milho, a soja. Por outro lado, ele é uma cultura tradicional. E esses dois modelos estão em disputa”.

É nesse embate entre dois usos tão distintos de um mesmo fruto que o pesquisador quer dar sequência ao seu estudo. Ele afirma que deseja levar as discussões da dissertação para a área da saúde coletiva. Diz que vê relações entre a comoditização do açaí e o que aconteceu outrora com o açúcar — que foi de um item de luxo a um ingrediente barato, relacionado à profusão de males que são as principais causas de morte mundialmente.  

“Para mim, a grande reflexão que tiro é como existe essa relação entre três fenômenos: o da financeirização; o da flexibilização dos cultivos, no qual um mesmo cultivo pode servir para várias indústrias; e o fenômeno dos ultraprocessados”, conclui. “A partir do momento em que a gente está exposto a isso, há uma série de doenças crônicas não transmissíveis que se proliferam.” 

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