Entre críticas públicas vazias – e alinhadas à indústria – ao Guia Alimentar brasileiro e conflitos internos que minam a credibilidade, a Sociedade Brasileira de Tecnologia de Alimentos vive em desalinho
Suzana Lannes fala fácil em crueldade. Para a presidente da Sociedade Brasileira de Tecnologia de Alimentos (SBCTA), parece soar terrível chamar pelo que de fato são os itens comestíveis altos em sal, gordura e açúcar. Apelidados em inglês de junk food (comida lixo), no Brasil eles constam do Guia Alimentar para a População Brasileira, editado em 2014 pelo Ministério da Saúde, como ultraprocessados. O termo conta com a aceitação crescente da comunidade científica, mas, para Suzana, ele é apenas “cruel”.
— O Guia é cruel. Fala diretamente muito mal de alimentos processados. Não gosto do uso do termo ultraprocessados, disse, em entrevista concedida à reportagem de O Joio e o Trigo, em 29 de setembro do ano passado.
Durante este texto, pontas que surgiram desde então serão amarradas e estará explicado por que o publicamos quase um ano mais tarde.
Lembre-se: esses produtos “vítimas de crueldade” têm relações afirmadas e reafirmadas nacional e internacionalmente com a obesidade e doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e câncer.
A avaliação da presidente da SBCTA é, portanto, duplamente problemática. Primeiro, porque a humanidade vive uma epidemia: o mundo caminha para a marca de um bilhão de obesos e, pelas projeções, em breve terá mais crianças com sobrepeso do que famintas. No Brasil, mais de 50% da população apresenta sobrepeso.
Segundo: ela parte de uma ideia que coloca na mesma prateleira comida de verdade (arroz, feijão, frutas, verduras e legumes) e coisas que, depois de procedimentos quase incontáveis e enxertos de ingredientes estranhos até nos nomes, saem das esteiras de fabricação imitando comida (de iogurtes e barrinhas de cereais a bolachas recheadas e refrigerantes).
— Tudo é processado. Você pega qualquer alimento, se ele passa por uma operação unitária de limpeza, por exemplo, então, já é processado.
É assim — e apenas assim — que Suzana, também professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), justificou a palavra “cruel” dirigida ao Guia.
No entanto, o Guia Alimentar para a População Brasileira faz separações. Nem tudo ali é “crueldade”. O documento classifica os alimentos em grupos: in natura (frutas, legumes) e minimamente processados (arroz, feijão e frutas secas), indicados como a base da alimentação; processados (queijos, pães, conservas), apontados para ser consumidos com moderação; e os ultraprocessados (macarrão instantâneo, salgadinhos de pacote e refrigerantes), que devem ser evitados.
— Mas o Guia é muito direto, simplista.
Chega ainda mais estranho aos ouvidos o argumento do “simplismo”. Porque, na sequência, ela tenta se sustentar numa categorização genérica, simplória até, para enquadrar alimentos.
— Existem os bons alimentos, nos quais se executa o processamento com a garantia de segurança dos alimentos que são processados corretamente, para livrá-los do risco de contaminações. Processado, tudo é, desde o cultivo.
“Precisamos chegar”
Fundada em 1967, praticamente junto com a solidificação da indústria alimentar no Brasil, a SBCTA é, historicamente, aliada das empresas. A maioria dos grupos que compõem os quadros da sociedade, que possui 56 diretores regionais, usa o discurso de que “nosso país é um país agrícola e precisamos alimentar o mundo”. Suzana disse, no conteúdo, somente trocando algumas palavras na forma, exatamente isso.
— Precisamos alimentar a humanidade e fazer os alimentos chegarem longe. Como enviar alimentos para a África, onde tem muita gente que precisa, se não for processado?, enfatizou.
Ela se baseia na previsão da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), de que até 2050 a produção de alimentos precisa dobrar para “alimentar o mundo”.
— Então, não dá para simplesmente falar mal dos alimentos, afirmou.
“A contribuição da Sociedade foi essencial para os caminhos solidificados do agronegócio brasileiro”, apresenta-se a SBCTA
Vê-se que a tônica da “crueldade” com os vitimizados produtos ultraprocessados prossegue, mas sem tocar num ponto essencial: esse tipo de item é predominantemente fabricado em larguíssima escala por dez megaempresas que concentram a produção no planeta: Nestlé, PepsiCo, Unilever, Mondelez, Coca-Cola, Mars, Danone, Associated British Foods (ABF), General Mills e Kellogg’s, que comandam (tendo corporações de agrotóxicos como parceiras, casos de Bayer, Basf, Bunge e Syngenta), o volume de vendas do setor alimentar mundial.
— A gente tem é que ter um bom acompanhamento da cadeia alimentar. Tem muito espaço para crescer (no Brasil). Precisa ter é boa avaliação de contaminantes, avaliação da Anvisa, do Ministério da Saúde, ressaltou.
Tudo muito lindo, tudo muito bom. Mas parece que Suzana, desde 2015 na presidência da SBCTA e em pleno segundo mandato, nem imagina que a indústria se posiciona estrategicamente para ocupar vagas que deveriam ser da universidade na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que ignora a pressão e o lobby das corporações exercidos sobre o governo.
O “Quem Somos” da página da sociedade na internet é bastante óbvio quanto aos interesses prioritários que defende. Aí vai um trecho emblemático: “A contribuição da Sociedade foi essencial para os caminhos solidificados do agronegócio brasileiro, bem como no fortalecimento da carreira profissional e no florescimento de milhares de empresas de Norte a Sul do país. A SBCTA também teve uma importante contribuição técnico-científica para formulação de legislações e normas técnicas.”
Mais um laço com a indústria é o espaço físico ocupado pela sede da organização. Ela está localizada em Campinas (SP), numa estatal vinculada à Secretaria Estadual de Agricultura de São Paulo: o Instituto Tecnológico de Alimentos (Ital), criado também para ser parceiro inseparável do setor privado.
— Tem é que ir corrigindo a cadeia com legislação, com atuação da Anvisa, com consultas públicas, continuou Suzana.
Contudo, ainda que de leve, ela admite, depois de uma pergunta sobre a real democracia nesses processos:
— A indústria, claro, não pode ter os interesses favorecidos. A coisa tem que ser mais democrática. Tem que atender aos interesses da população. E tem legislador, nesse sentido, que cede às pressões (da indústria).
Conflitos privados
A sociedade científica já chegou a ter 1.500 sócios, mas esse número foi ladeira abaixo após conflitos internos que espantaram associados e parceiros. Eles esvaziaram os encontros promovidos pela entidade cinquentenária e, inclusive, migraram para patrocinar outros simpósios e congressos de Tecnologia de Alimentos. Alguns, dirigidos por ex-presidentes da organização e que se tornaram verdadeiros “cultos à personalidade” de quem os criou.
O número de afiliados da SBCTA atualmente é tão pequeno que Suzana Lannes opta por não revelar:
— Eu prefiro nem te falar. Sou presidente desde 2015. Estou no segundo mandato, arrecadando dinheiro com venda de cursos [alguns são gratuitos], mas, como perdemos muitos sócios nos períodos da confusão, meu trabalho é readquirir a confiança.
Os “períodos da confusão” teriam se dado entre 2005 e 2013, quando, segundo a presidente, ocorreram “gestões problemáticas”.
O ápice dos conflitos se deu em 2012. Naquele ano, o jornal Folha de S.Paulo revelou que a ex-presidente da SBCTA, Glaucia Pastore, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cancelou um debate que ameaçava criar constrangimentos à indústria. Glaucia chefiava, na época, o Congresso Mundial de Ciência de Alimentos e Tecnologia, realizado em Foz do Iguaçu, no Paraná.
Era o estopim de um problema que vinha se arrastando há anos. A mesa cancelada, que levava o título de “O papel da mídia na obesidade infantil”, era sugestão da então presidente da sociedade, Jane Gonçalves Menegaldo.
Suzana, que passou a fazer parte da direção na gestão de Glaucia, em 2005, diz que as “desavenças foram preocupantes” e acabaram resultando em prejuízos para a organização.
— Para você ter uma ideia, eu fui editora da revista de ciência (da SBCTA) por um tempo, lá atrás. Aí, a revista estava acabando e eu voltei, em 2013, para reerguer. A revista perdeu a influência, porque os interesses pessoais se tornaram maiores do que os coletivos.
A revista a que a professora se refere é a Food Science and Technology, que quase não resistiu aos embates internos e chegou a perder o “fator de impacto”, medida que reflete o número de citações de artigos publicados em periódicos científicos. Agora, o veículo de divulgação sobrevive às custas de autores que pagam, em média, 200 dólares (842 reais) para ter um texto publicado.
Ainda segundo Suzana, o caixa da sociedade estava praticamente zerado quando ela assumiu a presidência. Isso, porque “más gestões” estiveram à frente da entidade.
Problemas contínuos
Neste ano, novos conflitos estouraram e se tornaram públicos envolvendo a SBCTA. A nossa reportagem obteve informações de que a programação do Congresso Brasileiro de Ciência e Tecnologia de Alimentos, promovido pela sociedade em Belém do Pará, no mês de agosto, foram discutidas na sede da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), numa reunião realizada entre Suzana e representantes da associação das empresas, na cidade de São Paulo.
Suzana Lannes não gostou da nossa reportagem sobre a reunião e fez duras cŕiticas à fonte que nos deu a informação —a quem classificou como “bandido”—, mas segue na presidência da sociedade.
Glaucia Pastore permanece na Unicamp e hoje é, literalmente, a cara do Simpósio Latino Americano de Ciência de Alimentos (Slaca), realizado de dois em dois anos, nas dependências da universidade, e patrocinado por grandes empresas diretamente, caso da Sadia, ou por organizações como a Abia, que agrupa as maiores corporações do setor.
Já Jane Menegaldo faleceu em 2012, em Teresina, Piauí.
Foto em destaque: Igor Ovsyannykov/Pixabay
Alerta! A indústria de alimentos extrapolou os dados… e os limites do bom senso