Fatores ligados à fatalidade da doença afetam de um quarto a metade da população adulta no Brasil, de acordo com pesquisa, e também atingem mais os mais pobres
A pandemia de Covid-19 avança do Oiapoque ao Chuí. O quadro de infecções graves pela nova doença é ruim. Até esta quarta-feira (22), eram 43.079 casos e 2.741 mortes confirmados, segundo o Ministério da Saúde. E essa situação não deve melhorar tão cedo. Ainda mais, considerados hábitos de alimentação e saúde dos brasileiros.
Mas espera aí. Calma! Antes que você queira odiar este repórter por insinuar que a população é culpada de um mal que a atinge invariavelmente, vamos colocar os pingos nos “i”s.
Nos últimos dez anos, nós, brasileiros, tornamo-nos, entre outras coisas, mais obesos e mais inativos fisicamente. Também, mantivemos índices longe do que é considerado saudável para diversas doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como hipertensão e diabetes. Além disso, pioramos a qualidade de nossa alimentação.
Pelo que se sabe, estes fatores elevam tanto o risco de desenvolver quadros mais graves da infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) quanto a chance de a doença ser fatal. 73% das mortes por Covid-19 confirmadas no Brasil acompanham algum fator de risco.
As mudanças no perfil da população, no entanto, ocorrem em um processo complexo, motivado ao longo da década passada pela ausência ou opção de políticas públicas e pela ocorrência de diversas transformações sociais.
Diversas pesquisas captam essa tendência. Uma delas se trata da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde. Com entrevistas por telefone, a Vigitel mostra, desde 2006, uma amostragem de indicadores sanitários da população adulta nas capitais dos 26 Estados e do Distrito Federal.
O objetivo é “monitorar a frequência e a distribuição dos principais determinantes das doenças crônicas não transmissíveis” para formular programas sociais e traçar planos de ação na saúde pública.
O que dizem os números
De acordo com os dados da Vigitel de 2018, a mais recente com informações disponíveis, pelo menos um quarto dos brasileiros adultos corre o risco de desenvolver sintomas graves da Covid-19 por ter hipertensão. 24,7% deles já receberam diagnóstico da doença.
Dois documentos que embasam as ações do Ministério da Saúde contra a pandemia no Brasil afirmam que males como a hipertensão e o diabetes (que afeta 7,7% da população, segundo a Vigitel) estão entre os principais fatores de risco associados à fatalidade do SARS-CoV-2.
Um guia sobre o coronavírus publicado no periódico The BMJ, do Reino Unido, diz que a mortalidade da Covid-19 é mais alta (acima de 15%) para pessoas com DCNTs. Já um estudo que retoma informações da epidemia na China lista que doenças crônicas podem elevar a chance de fatalidade entre 5,6% e 10,5%.
A incidência de outras problemas crônicos de saúde detectados pela Vigitel também preocupa. Um fator de risco que cresce nos últimos anos no Brasil é a obesidade.
O percentual de pessoas obesas é de quase um quinto do total de adultos (19,8%), segundo o inquérito do governo federal. Em 2009, esta quantidade era de 14,3%. Para os indivíduos com o peso acima do ideal, também chamados de sobrepesos, o número mais recente corresponde a 55,7%.
A obesidade é o principal fator de risco associado às mortes por Covid-19 na população com menos de 60 anos de idade, de acordo com o último boletim disponível (20 de abril) do Ministério da Saúde sobre a situação epidemiológica do coronavírus. Nessa fatia da população, 53 dos óbitos pela nova doença foram de pessoas obesas.*
Antes de a pandemia alcançar as terras brasileiras, as DCNTs já eram a principal causa de mortes no país. Isso é, os sinais de que a chegada da nova doença seria perigosa eram claros. Todos os anos, ao menos 70% dos óbitos tinham relação com estes males, segundo estimativas do governo federal.
As doenças crônicas, além disso, são responsáveis por cerca de 3 mil internações hospitalares diárias no país, conforme mostrou uma reportagem da Agência Pública.
Você já deve saber, mas não custa lembrar. Ainda não existem drogas ou vacinas conhecidos como tratamento eficaz contra o coronavírus. Por enquanto, o que as autoridades de saúde recomendam, além do isolamento social e das práticas de higiene, são os cuidados para reforçar o nosso sistema imunológico.
A médica imunologista Ana Maria Caetano de Faria, e professora da Universidade Federal de Minas Gerais , sugere quatro atitudes: 1. evitar o estresse; 2. praticar atividades físicas; 3. dormir boas noites de sono; e 4. manter uma alimentação saudável, evitando os alimentos ultraprocessados.
“Evitar os alimentos ultraprocessados é importante, já que eles apresentam sal, gordura e açúcar em excesso”, ela afirmou durante uma entrevista coletiva para jornalistas organizada pela Agência Bori com a Sociedade Brasileira de Imunologia e apoio da RedeComCiência.
O alerta da professora é endossado pelo Ministério da Saúde, que divulgou orientações sobre evitar os itens ultraprocessados. Além disso, ele chama a atenção para uma mudança no país que tem relação com os índices crescentes de DCNTs na última década.
O peso da alimentação
A Vigitel mostra que a grande maioria dos brasileiros não tem o hábito de consumir frutas e hortaliças — em 2018, a cifra era de 23,1% do total da população adulta. Para chegar a este número, a pesquisa perguntou aos entrevistados o quanto dos dois tipos de alimento eles comeram na última semana. Depois, estimou o percentual de acordo com aquilo que é considerado saudável.
A Organização Mundial da Saúde diz que o consumo diário de pelo menos cinco porções (ou 400 gramas) por dia de frutas e hortaliças é o adequado para uma boa saúde.
As autoridades sanitárias afirmam que estes alimentos são importantes tanto para manter uma boa imunidade quanto para evitar desenvolver doenças crônicas. Também dizem que, para estes males, melhor do que remediar é prevenir.
“A proteção que o consumo de frutas ou de legumes e verduras confere contra doenças do coração e certos tipos de câncer não se repete com intervenções baseadas no fornecimento de medicamentos ou suplementos”, diz o Guia Alimentar para População Brasileira, do Ministério da Saúde.
O documento federal é a principal referência no país com orientações acessíveis sobre uma alimentação saudável. O recado do Guia pode ser traduzido de uma forma simples: evite os alimentos ultraprocessados (salgadinhos, macarrões instantâneos, bolachas, salsichas, refrigerantes…) e prefira aqueles in natura e/ou minimamente processados, como frutas, ovos, carnes, legumes e verduras.
O que está acontecendo no Brasil, no entanto, vai na contramão. Outro levantamento joga luz sobre essa tendência. A última edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, mostra que de 2002 para cá a quantidade de alimentos ultraprocessados no total de calorias ingerido pela população aumenta, enquanto a de alimentos in natura e/ou minimamente processados diminui.
Como já mostramos, a POF também retratou uma queda brusca no consumo de arroz e feijão, considerados os mais brasileiros de todos os pratos. Daí, a gente pode inferir sem medo: quanto mais ultraprocessados, menos brasilidade.
Eu digo isso porque a situação no Brasil guarda mais semelhanças do que o desejável com o quadro do México. Lá, assim como aqui, os alimentos locais, consumidos tradicionalmente nos lares do país, foram deixados de lado para dar lugar a refrigerantes, macarrões instantâneos, salsichas, muitos doces e outras guloseimas.
Se você está por fora, recomendo que escute, caso ainda não o tenha feito, o episódio do nosso podcast Prato Cheio que relata a situação: Era uma vez no México
É claro que a alimentação não é a culpada exclusiva pelo aumento de fatores de risco no Brasil. Ao lado dela ainda existem o álcool, o tabaco e o sedentarismo. Mas o aumento do consumo de ultraprocessados, como insistimos em dizer no Joio, é um fenômeno mundial, que acompanha a globalização. O neoliberalismo abriu mercados e, também, a porteira da comida-porcaria.
Os efeitos sobre o corpo
A chance de desenvolver quadros mais graves de Covid-19 nas pessoas com DCNTs chamou a atenção da comunidade científica. Por enquanto, uma hipótese que ganhou força diz que as doenças crônicas acompanham uma expressão mais proeminente do gene ACE2, já que outros estudos mostram que este gene codifica uma proteína que o coronavírus utiliza para invadir as células humanas.
Tal explicação foi proposta por um grupo de pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Para sustentar a hipótese, eles utilizaram de um método chamado de mineração de textos, que usa computadores para compilar informações de artigos científicos.
Após vasculhar mais de oito mil textos relacionados ao tema da pesquisa, as máquinas restringiram a busca às informações sobre doenças crônicas, o SARS-CoV-2 e outros coronavírus. Ao analisar a compilação de dados encontrados, os cientistas perceberam que o gene ACE2 é um gene relacionado ao controle da pressão arterial e a alguns processos inflamatórios. Também notaram que ele é mais ativo em pessoas com DCNTs.
A hipótese, publicada na plataforma medRxiv, ainda não foi testada em laboratórios, mas pode oferecer caminhos para outros estudos, além de oferecer pistas para procurar por um tratamento. “Foi uma pesquisa básica para entender por que as pessoas com comorbidades têm maiores chances de ter uma Covid-19 severa”, afirmou ao Joio o cientista Hélder Nakaya, coordenador da pesquisa na USP.
Os mais vulneráveis
Ainda existem muitas dúvidas sobre as implicações que o coronavírus traz para o corpo humano. No entanto, já se sabe alguma coisa sobre as consequências políticas e econômicas que este parasita desencadeou no país e no mundo. Está claro, mas não custa demonstrar, que os socialmente mais vulneráveis serão afetados.
A conclusão está em um relatório de autoria das economistas Laura Carvalho, professora da USP, e Luiza Nassif Pires, da Levy Economics Institute, com a médica Laura de Lima Xavier, da Harvard Medical School. A partir de dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, a mais recente disponível, elas mostraram que a incidência de DCNTs é maior na fatia da população com menos escolaridade.
Segundo o relatório, 54% dos brasileiros que frequentaram até o ensino fundamental apresentam uma ou mais doenças crônicas. O percentual é consideravelmente inferior entre os que chegaram até o ensino médio (28%) e o ensino superior (34%).
Entre outros estudos, o relatório se fundamenta em um artigo publicado nos Estados Unidos intitulado “Nós precisamos de políticas sensíveis à classe, raça e gênero para enfrentar a crise da Covid-19” (em inglês, o original é “We need class, race, and gender sensitives policies to fight the covid-19 crises”).
A partir da coleta de dados em Nova York, um dos epicentros mundiais da nova doença, o estudo norte-americano mostra algo que já estamos vendo no Brasil. As regiões mais pobres e periféricas sofrem mais intensamente os efeitos da pandemia da nova doença. Em São Paulo, maior metrópole do país, o bairro com mais concentração de mortes confirmadas ou suspeitas por Covid-19, segundo a prefeitura, é a Vila Brasilândia, um dos mais pobres da capital.
“O gatilho das desigualdades sociais sobre a saúde é bem conhecido. Uma relação clara foi demonstrada repetidamente entre determinantes sociais – como renda, educação, ocupação, classe social, sexo e raça/etnia — e a incidência e gravidade de muitas doenças”, afirma o estudo dos EUA.
O melhor a fazer
Asclépio é um nome difícil e, provavelmente, seja a primeira vez na vida que muitos o escutem. Os mitos antigos dizem que ele, filho de Apolo, é o deus grego da medicina.
As lendas afirmam que Esculápio teve duas filhas, sobre as quais você já ouviu falar: Hígia e Panaceia. Cada uma delas teria recebido dois talentos do pai. Enquanto esta seria a responsável pela cura de todos os males, a outra seria incumbida dos cuidados com a higiene e a prevenção das doenças.
Podemos trazer a história antiga para os dias atuais. Até o momento, Panaceia não deu as caras. E a nossa saúde está nas mãos de Hígia.
Isso quer dizer que, por enquanto, não há outro enfrentamento eficaz contra a Covid-19 que não seja a prevenção. Se puder, portanto, fique em casa!