UN Photo - 25.09.2015/Kim Haughton

José Graziano: ‘Segurança alimentar nas mãos do mercado entrega os pobres à fome’

Em entrevista, ex-diretor da FAO cita a importância de estimular a produção local e criar regras para o comércio de alimentos durante e depois do coronavírus

Estimular a agricultura local é necessário não só para evitar um possível desabastecimento durante a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Também precisa estar no horizonte de prioridades para o mundo após essa crise — ainda longe do fim. E pequenos produtores rurais precisam tanto do apoio do Estado quanto do de consumidores.

Essas constatações têm uma importância singular. Vêm de uma pessoa que acompanhou, como poucos, o funcionamento do sistema alimentar mundial: o agrônomo José Graziano da Silva, que, entre 2012 e 2019, ocupou a direção da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Poucos dias após o início das quarentenas para prevenir a transmissão do SARS-CoV-2 no Brasil, Graziano concedeu entrevista para O Joio e O Trigo a fim de discutir a situação do comércio de alimentos enquanto perdurar e após o final da pandemia de Covid-19.

“O coronavírus vai impor uma reestruturação produtiva. Não apenas por causa da pandemia, mas porque questiona o modelo econômico no qual estávamos assentando a globalização”, afirmou.

A frase, dita a este repórter por telefone, veio durante uma conversa que serviu para o mais recente episódio do podcast Prato Cheio: Especial #5 Bem Viver e Comer, um exercício para pensar o futuro da saúde e da alimentação no Brasil e no mundo. Mas a afirmação também desperta reflexões.

Sem dúvidas, as nossas últimas décadas foram marcadas por um vai-e-vem ininterrupto de comida viajando por milhares de quilômetros. Por exemplo, a soja, produzida em escala recorde no Brasil, segue para a produção de óleo ou ração animal na China. Ou, então, para abastecer um punhado de transnacionais fabricantes de alimentos ultraprocessados.

Esse desenho do sistema alimentar mundial não deve mudar de uma hora para a outra — serve, inclusive, para prover países sem vocação para a atividade agrícola. No entanto, segundo Graziano, precisa dar espaço a alternativas. No quadro atual, a produção mundial de alimentos provocou outra pandemia, de obesidade, mais antiga e persistente que a de Covid-19.

Para enfrentar este problema de saúde pública, o ex-diretor da FAO sugere o aporte de recursos para políticas de fomento à agricultura camponesa no país e recomenda a criação de regras para o comércio de alimentos no mundo. Rumos bem diferentes daqueles tomados pelo governo federal, sob a tutela da ministra da Agricultura Tereza Cristina.

“Acreditar que no Brasil a segurança alimentar vai ser garantida apenas pelos mecanismos de mercado é admitir que os pobres vão continuar passando fome”, disse Graziano, que também foi ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, entre 2003 e 2004, no Brasil.

Confira os principais trechos da entrevista abaixo.

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Pergunta — O senhor vê alguma relação do sistema alimentar globalizado com o surgimento de tantas doenças, como a Covid-19, nos últimos anos? Antes tivemos a gripe aviária, o H1N1 (apelidado de “gripe suína”), a SARS e a MERS.

Resposta — O que eu acho que está em questão não é a transmissão [de doenças] via os alimentos. Hoje, se há uma doença, com aspas, que foi propagada pela globalização, é a epidemia de obesidade que o mundo vive pelo consumo de produtos ultraprocessados e com alto teor de açúcar, sal e gorduras saturadas.

Isso se deve a uma mudança do padrão alimentar que basicamente tem a ver com a nossa forma de viver nas cidades, correndo todos os dias, comendo fora, então precisa de uma comida rápida, um produto já pré preparado e perdemos todos aqueles hábitos saudáveis antes de comer tranquilamente em casa, comidinha feita pela vovó colhida da horta.

Esse mundo já foi superado e agora temos que encontrar soluções para o mundo em que vivemos, mas a solução certamente não é parar o transporte de alimentos. Há regiões do mundo que não têm condições de sobreviver sem importação de alimentos, e entre essas regiões estão os países mais pobres da África, por exemplo.

Pergunta — Falando em soluções, o mundo globalizado têm poucos circuitos curtos nos quais a comida é produzida perto de onde será consumida. Prevalecem os “circuitos longos”, como nas exportações de soja do Brasil para a China, por exemplo. A crise decorrente do coronavírus não mostra que essa configuração é problemática?

Resposta — Os circuitos curtos são uma necessidade, mas isso não tem nada a ver com os circuitos internacionais como a soja. Você não come soja. Se você pegar uma cidade que produz soja e proibir a saída de soja da cidade, ninguém vai passar a comer soja. Nós consumimos derivados de soja: o óleo, e usamos a soja basicamente para produção animal.

Fazer uma reconfiguração produtiva local é virtualmente impossível nesse momento e não seria prioridade de nenhum governo sério. Deixe exportar, divida esse canal exportador, porque ele traz dólares, divisas fortes que são fundamentais para nós podermos comprar todos os equipamentos sanitários que estão faltando no Brasil e são produzidos pela China.

Ao mesmo tempo, vamos estimular sim a produção de circuitos curtos locais. Isso pode ser feito. Eu tenho defendido que o principal foco das ações governamentais tem que ser as cidades. Circuitos locais, feiras livres, CSAs [Comunidades que Sustentam a Agricultura], a organização de consumidores para evitar a especulação.

Pergunta — A gente viu que, nesse momento de crise, os pequenos agricultores que abastecem os circuitos-curtos estão com dificuldade de chegar a mercados locais. Apesar da importância que têm, eles não recebem pouca proteção?

Resposta — Sem dúvida. Não são só os pequenos agricultores. O sistema de abastecimento brasileiro é basicamente assentado nos caminhões. Se nós deixarmos colapsar o sistema de abastecimento viário, vai haver uma crise alimentar. E isso afeta todo tipo de abastecimento: produtos perecíveis, não perecíveis, agrícolas e não agrícolas.

Temos medidas emergenciais. Nessas medidas já estão aparecendo casos de criação de redes de solidariedade, de rede social, de redes de compras. Um mecanismo extremamente eficiente é o programa de compras da agricultura familiar na modalidade de doação simultânea. Você compra mas deixa o produto no lugar, ou seja, na verdade você injeta recursos na economia local através dos produtores agrícolas.

“Acreditar que no Brasil a segurança alimentar vai ser garantida apenas pelos mecanismos de mercado é admitir que os pobres vão continuar passando fome”

Existem outras ações: a compra, por exemplo, para merenda escolar, que é um outro mecanismo que deve ser acelerado agora. Está na hora de insistir que se compre localmente. Primeiro porque é um produto de melhor qualidade, fresco, mais nutritivo. Segundo, porque injeta recursos na economia local, que é onde as pessoas estão tendo problema de emprego e de abastecimento.

É a revitalização desses circuitos curtos através dessas medidas de política, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), como a compra para merenda escolar, um dos caminhos fundamentais nesse momento.

Pergunta — Como o senhor avalia a condução do governo e, especificamente, da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, na gestão da crise no Brasil?

Resposta — O governo tem se pautado por desmontar os instrumentos da política de segurança alimentar implementada pelo governo Lula de 2003 e depois pelo governo Dilma. A primeira medida tomada foi a extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que assessorava o presidente da República nos temas da segurança alimentar.

E zerou os estoques [públicos de alimentos]. Está até apontando para a privatização da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], que é a companhia estatal que compra e faz a redistribuição dos excedentes alimentares. Isso significa um desleixo, uma despreocupação com a segurança alimentar.

Acreditar que no Brasil a segurança alimentar vai ser garantida apenas pelos mecanismos de mercado é admitir que os pobres vão continuar passando fome.

Se não houver uma intervenção cotidiana do governo, os sistemas alimentares nossos não são aptos a prover o abastecimento de todos. Isso não é só no momento de crise, segurança alimentar tem que ser uma política cotidiana, diária.

Pergunta — Pelos problemas que desencadeou, a atual crise não deveria nos fazer repensar o papel que o Brasil ocupa não só com relação a nossa agricultura local, mas na economia global, de exportador de commodities?

Resposta — Eu acho que isso já está em curso, independente da crise do coronavírus. Na Europa, por exemplo, a valorização das não-commodities já é um fato, seja através da agricultura orgânica, seja através de outras formas de produção alternativas como agricultura familiar baseada na agroecologia.

A agroecologia é uma forma alternativa de produção que tem crescido rapidamente nos países desenvolvidos, e essas formas tendem a questionar o domínio das commodities agrícolas. Agora, haverá sempre um mercado de commodities agrícolas para abastecer aqueles países, sobretudo, que têm que importar quantidades grandes de alimentos, que não conseguem ter produção própria.

Sem dúvidas, há uma revisão do padrão alimentar que nos está levando à uma epidemia de obesidade. Hoje nós comemos mais do que devíamos e comemos mal. A qualidade da nossa alimentação é muito pior hoje do que era antes, pela grande proporção de açúcares, alimentos com alto teor de sal e óleos saturados.

Eu acho que a gente não pode ser oportunista e querer agora aproveitar o coronavírus para mudar todas as coisas. O coronavírus vai impor uma reestruturação produtiva. Não apenas por causa da pandemia, mas porque questiona o modelo econômico no qual estávamos assentando a globalização.

Graziano se tornou um defensor de medidas regulatórias para desestimular o consumo de ultraprocessados (Foto: FAO/Giuseppe Carotenuto)

Vai haver muito mais sistemas de proteção nacionais, muito mais sistemas de proteção dos consumidores e tomara que haja uma preocupação muito maior com a saúde global.

Gradativamente os países estão se movendo no sentido de impor restrições nacionais à comercialização de alimentos ultraprocessados, mas não à importação desses alimentos. Precisa de um aperfeiçoamento das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), para levar em conta não apenas os alimentos que são nocivos à saúde, mas também aqueles que provocam essa epidemia de obesidade que estamos vendo.

Agora, tudo isso faz parte da regulamentação. Infelizmente, a regulamentação vai sempre atrás do prejuízo. Por ser um processo social, e não ser um processo privado como é a introdução de novos bens, de novas tecnologias, inovação, a regulamentação que é feita por leis, por debates sociais, e vai muito mais lenta.

Pergunta — Então, uma das perspectivas, após a crise do coronavírus, talvez seja um comércio mundial mais regulado e com mais atenção dos estados nacionais?

Resposta — O meu diagnóstico geral é que falta no mundo regulação social, mas não uma regulação de âmbito nacional apenas. O pior que poderia acontecer —isso seria um passo atrás na globalização— seria cada estado nacional voltar a fixar leis não se importando com os vizinhos. Os problemas que nós temos hoje são globais. Coronavírus é um exemplo disso.

Não adianta uma regulação brasileira. Ou todo mundo combina o jogo e faz uma regulação para tomar as mesmas medidas para atacar essa pandemia ou ela não vai ser contida.

Nós precisamos de mecanismos regulatórios globais, e é aí onde está fazendo falta organizações como Organização Mundial da Saúde (OMS) ser mais ativa, a OMC, a própria FAO. Só quando dá uma epidemia dessas que a gente começa a escutar o que fala a OMS.

Pergunta — No seu último dia à frente da FAO, a organização publicou um documento reunindo evidências que mostram males relacionados aos alimentos ultraprocessados. O senhor não acredita que eles têm um papel importante para a segurança alimentar num momento como esse de crise?

Reposta — Não acredito. Nós não precisamos comer salsicha todos os dias para obter a proteína que precisamos. Até, nem sei se na salsicha tem proteína. Bismarck, o chanceler alemão de muito tempo atrás, costumava dizer que, se o povo soubesse como são feitas as leis e as salsichas, haveria uma revolta imediata.

Os produtos ultraprocessados nós não sabemos sequer os seus componentes, e é uma tendência hoje de sofisticar com ingredientes cada vez mais artificiais.

Nós temos outras formas de suprir os alimentos. Os produtos básicos que o Brasil come: feijão, mandioca. São produtos que têm uma boa capacidade alimentícia. Acrescentar a isso frango e ovos, como fonte de proteína animal, estamos bem. Nossa alimentação não deveria apresentar problemas, não deveríamos precisar comer salsicha.

Pergunta — A gente discutiu algumas questões, vamos dizer, mais estruturais. Mas, na prática, o que as pessoas podem fazer no dia a dia para melhorar o sistema alimentar?

Reposta — Eu estou muito entusiasmado com uma experiência que vi em Brasília e que acho que poderia ser uma grande saída. São as CSAs. Uma comunidade qualquer, um condomínio de um edifício, resolve fazer compras de um determinado agricultor ou de uma cooperativa de agricultores e financia essa compra e os agricultores fornecem, regularmente, suas cestas básicas de produtos que são combinados.

Então essa semana vou entregar isso. Quando acabar a safra vai substituir por aquele etc. etc. Tem toda uma disciplina, um regramento e hoje está funcionando como um mercado cativo onde eu, consumidor, sei da onde vem o produto que eu vou consumir, sei a qualidade desse alimento, posso ir lá fiscalizar a produção, e o produtor tem garantido seu mercado, ele sabe para quem ele vai vender o produto que está produzindo.

“A qualidade da nossa
alimentação é muito pior hoje do que era antes”

Esse é apenas um exemplo. Há inovações importantes no mercado de consumo de alimentos que vão ser estimuladas por essa crise. Uma delas é o sistema de entrega à domicílio que hoje está funcionando muito bem numa série de redes de entrega. “Ah, mas os caras trabalham até exaustão”. Bom, precisa disciplinar isso.

Quando começou a Revolução Industrial as pessoas também trabalhavam 16 horas por dia, até vir uma lei dizendo “olha, o máximo para trabalhar é 40 horas por semana, ou 44”.

Hoje nós estamos vendo as inovações para separar o joio do trigo, como vocês bem sabem, e tomar essas inovações no seu lado bom e procurar regulamentá-las, discipliná-las para que possam ser reproduzidas e melhorar o sistema alimentar. Essa é a agenda do futuro.

Por Guilherme Zocchio

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