Levantamento de O Joio e O Trigo sobre a capital paulista mostra que distritos com maior IDH apresentam maior oferta de comida não saudável
Pelos distritos do centro e do centro expandido da cidade de São Paulo, áreas inteiras permanecem alagadas, mas não, necessariamente, pela água das chuvas ou pelo curso dos rios. Os bairros mais ricos da capital paulista permanecem submersos em outro tipo de áreas lodosas, de um nome menos convencional: pântanos alimentares.
São regiões onde é predominante a venda e a exposição de alimentos considerados não saudáveis, ricos em calorias mas pobres em nutrientes. Nestes locais é igualmente comum o incentivo ao consumo dessas comidas com a oferta de porções extras, além do estímulo induzido por propagandas e campanhas de marketing.
Os pântanos alimentares, de um modo geral, caracterizam-se por áreas de vasta oferta de bolachas, fast foods, lanches, macarrões instantâneos, refrigerantes, salsichas, entre outros itens que também são chamados de alimentos ultraprocessados.
O Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde sobre alimentação saudável, define ultraprocessados como aqueles itens obtidos a partir de fragmentos de outros alimentos, aditivos químicos e preparação com técnicas industriais complexas. Costuma-se reconhecê-los, nas prateleiras do comércio, como aqueles produtos com cinco ou mais ingredientes de nomes pouco familiares (maltodextrina, p.ex.).
O projeto São Paulo: onde falta e onde sobra comida saudável, de O Joio e O Trigo, identificou que os distritos nas regiões do centro e centro expandido são as áreas da capital paulista em que há uma oferta mais abundante de ultraprocessados.
Em bases de dados públicas, o projeto levantou o CNPJ dos estabelecimentos de vendas de comida registrados até o início de 2020 na cidade, como açougues, bares, lojas de conveniência, mercados, restaurantes e sacolões. Depois, verificou a inscrição deles na Classificação Nacional de Atividades Econômicos (CNAE).
O CNAE dos recintos foi utilizado para dividi-los conforme a predominância dos tipos de alimentos que disponibilizam. Estes locais foram agrupados segundo a divisão dos tipos de comida prevista no Guia Alimentar. 1. De venda predominantemente de alimentos in natura e/ou minimamente processados, considerados saudáveis. 2. De alimentos ultraprocessados, não saudáveis. 3. De venda mista das duas categorias anteriores.
O critério da divisão está descrito na tabela abaixo.
Para determinar a localização dos pântanos, bombonières, cantinas, lanchonetes e lojas de conveniência, por exemplo, foram considerados estabelecimentos de venda predominante de alimentos ultraprocessados.
O método para fazer essa classificação é o mesmo utilizado por outros estudos, como a tese do cientista Paulo César de Castro, que estudou o ambiente alimentar na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa dele inspirou e embasou o levantamento de onde falta e onde sobra.
A distribuição dos estabelecimentos de venda de ultraprocessados se concentra nos distritos paulistanos onde o Índice de Desenvolvimento Humano é considerado alto, ou seja, está acima de 0,8. O indicador varia entre 0 e 1, calculando a longevidade, a escolaridade e renda médias, e serve como uma espécie de régua para medir a qualidade de vida em um determinado local — quanto mais alto, melhor.
“O nível socioeconômico de uma região atrai os dois tipos de estabelecimentos [saudáveis ou não], mas atrai mais os que vendem alimentos não saudáveis”, afirma a pesquisadora Larissa Loures Mendes, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e líder do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (GEPPAAS).
Apesar de a informalidade tornar difícil detectar pântanos alimentares em regiões mais pobres, a presença das áreas ainda é mais significativa nas regiões com mais dinheiro. A maior possibilidade de lucro de um empreendimento, por estar em uma região de mais renda, ou, então, a maior disponibilidade de serviços públicos, são fatores que atraem os ultraprocessados para bairros mais ricos, segundo a pesquisadora.
“Já existe uma quantidade muito grande de locais que vendem alimentos ultraprocessados. Minha hipótese é que, de fato, a gente tem, no geral, uma quantidade maior de estabelecimentos que vendem comida não saudável.”
“Além disso, observamos em análises estatísticas que existem fatores que favorecem a oferta de alimentos não saudáveis. Escolas particulares, por exemplo, atraem estabelecimentos de comida ultraprocessada”, diz Larissa.
A maior oferta de alimentos ultraprocessados em regiões mais ricas não é uma exclusividade da capital paulista. O mesmo fenômeno se repete em outras cidades, uma constatação que está em outras pesquisas sobre ambiente alimentar.
Uma reportagem do Joio mostrou que, em Belo Horizonte e cidades da região metropolitana, instituições privadas de ensino dividem a vizinhança com padarias, lanchonetes e lojas de doce, que encontram nos estudantes de escolas particulares uma clientela cativa para produtos com altas doses de sal, gorduras e açúcar.
Caso semelhante ocorre na cidade de Viçosa, na região da Zona da Mata Mineira. O município, a 220 km da capital de Minas Gerais, motivou um estudo do GEPPAAS para verificar a qualidade do ambiente alimentar.
“Percorremos todas as ruas da cidade. Fizemos uma auditoria completa de todo o município. Apesar das informalidades que a gente observa em regiões mais pobres, o padrão de pântanos alimentares em regiões mais ricas se repete”, afirma a pesquisadora Milene Cristine Pessoa, também professora da UFMG e integrante do GEPPAAS.
A oferta de ultraprocessados faz com que os pântanos alimentares sejam não só áreas onde é mais fácil encontrar estes alimentos. Também as transforma em locais onde o consumo deles é, inclusive, incentivado. “As pessoas ali estão imersas tanto na comida não saudável quanto na publicidade e no marketing dela”, comenta Larissa.
“O apelo midiático para o consumo desses produtos é gigantesco. O investimento dos produtos ultraprocessados é muito grande, envolve muito dinheiro. Tem o desenho das embalagens e, agora, durante a pandemia do coronavírus, temos visto a propaganda deles em lives de diversos artistas”, acrescenta Milene.
Ambientes obesogênicos
Pelas características que têm, pântanos alimentares são ambientes obesogênicos. Isso é, são locais que oferecem condições para que as pessoas se tornem obesas e, ato contínuo, tenham mais chance de desenvolver doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) associadas ao maior índice de massa corpórea, como alguns tipo de câncer, diabetes e hipertensão.
O ambiente alimentar não é o único fator que irá levar alguém a aumentar de peso. No entanto, é um dos fatores que influenciam, de acordo com a pesquisadora Milene.
“Quando a gente pensa nos determinantes para doenças crônicas não transmissíveis, o estilo de vida urbano, com poluição, ausência de deslocamento ativo [caminhadas], estresse, juntamente com as características do ambiente alimentar, percebe que há maior incidência dessas enfermidades”, ela diz.
Larissa, professora da UFMG, afirma que para prevenir o aumento de DCNTs é importante criar regras para os ambientes alimentares. Ela cita como exemplo o entorno de escolas, em que a venda de alimentos ultraprocessados poderia ser controlada ou mesmo proibida. Como já mostramos, uma iniciativa do tipo está sendo implementada em Minas Gerais.
Pântanos na pandemia
Em São Paulo, os pântanos alimentares estão em algum dos distritos com menos mortes decorrentes e casos confirmados de infecção pelo coronavírus. A renda pode ser um dos motivos que explica a menor incidência do patógeno na população. Além disso, no Brasil, atribui-se uma maior mortalidade por Covid-19 a um menor poder aquisitivo.
Independentemente dos fatores sanitários, no entanto, o vírus já está induzindo a mudanças na oferta de alimentos.
Na primeira reportagem do projeto onde falta e onde sobra, mostramos como a crise desencadeada pela nova doença está levando ao fechamento de diversos estabelecimentos do ramo de alimentação.
Os efeitos econômicos, sem dúvidas, acompanham mudanças na dinâmica do ambiente alimentar. Anteriormente, mencionamos a tendência de que empreendimentos menores podem falir, enquanto os maiores, ligados a grandes redes ou empresas multinacionais, devem resistir melhor aos desdobramentos da pandemia.
A pesquisadora Milene chama atenção para a possibilidade de, com o tempo, haver um número ainda maior de estabelecimentos de venda de alimentos não saudáveis em relação àqueles que vendem comida in natura e/ou minimamente processada.
“Eu acredito que possa haver sim uma dinâmica do ambiente alimentar em função da pandemia. Porém, como os estabelecimentos de ultraprocessados têm uma facilidade logística de adquirir insumos, mercadorias, enquanto os outros têm mais dificuldades, acredito que eles possam se tornar mais presentes”, ela conclui.
Confira todas as reportagens publicadas na série:
- São Paulo: entre a abundância e a escassez no acesso à alimentação
- Deserto alimentar, Grajaú luta contra o coronavírus e a falta de políticas públicas
- Em pântanos alimentares, ultraprocessados ‘alagam’ bairros ricos de SP
- Oferta mista de alimentos é a maior em São Paulo e favorece os ultraprocessados
- Em São Paulo, mais dinheiro não é sinônimo de mais comida saudável
Os dados utilizados para o levantamento estão disponíveis aqui